domingo, abril 01, 2007


Parada no ponto

No ônibus, minha Nina Simone sopradora de assombros, incorporadora de erês cantantes, de suplícios saídos da catacumba da aldeia africana mais esquecida, me afastava da conversa de comadres ao fundo e do toque incômodo do pacote pontudo do distraído em pé ao meu lado.
Porra, não me afastava tanto assim. O pacote e agora a barriga do seu dono egoísta afundavam contra meu ombrinho descoberto. Mau dia o meu, o azar é dele: lancei minha maldição da mirada que fuzilaria um cabra no paredón - "foda-se, porque você não senta, hein? um lugar aí do lado e você se escorando em mim" - e, alvejado, ele sentou-se no ato, a dias-luz do meu mau-humor.
Ônibus é um belo laboratório, diria um professor de teatro ou um analista. Dezenas de anônimos partilhando o mesmo ar e pequenas grosserias, menores ainda gentilezas, boa noites mal ditos. Cobrador que alisa a sua mão ao apanhar o dinheiro, o que fazer mocinha? Atriz, você pode fingir gostar ou pode armar um escândalo; paciente de analista, pode sentar-se ao lado de um solitário para contar ou ouvir...
E que doçura de inconveniência se é um velhinho simpático quem puxa papo no assento ao lado? É de se fazer questão de inventar paciência. Noutro dia foi um cantor, um Ibrahim do samba que entoava só pra mim o Nelson Cavaquinho marlindo do mundo.
[E Nina, numa nostalgia impossível, a me carregar para longe o pensamento - êta vontade de saber cantar, de dar vez a essas vozes bêbedas que gritam da minha superpovoada mente e triste tristinha alma blues!]
Hora quase sempre oportuna, essa do ônibus; a minha pela religiosa longa espera. Tempo de planejar, voltar a fita das pendências de pensamento ou furtar uma graça na memória pra rir sozinho, feito maluco. Quem tem culpa da demora? Melhor é roubá-la e usar como der, amigo, como diz um poema de que só lembro a idéia: esperando é que a gente vê que, afinal, essa pobre vida não é tão curta quanto parece.
E já que a espera é grátis, como os dez por cento a mais de salgadinho-chocolate-refrigerante que, diz o pacote, é de presente, custou nada, aproveite! A espera no busú é oportunidade, uma espécie de refúgio pra abrigar pequenas pensatas e inspirações; o limbo de entre-tarefas, preciosos minutinhos que a gente deixa o dia-a-dia carregar na maior moleza.
Fome ou gula fantasiavam o capuccino com salgado ignoto de logo mais muito mais gostosos do que seriam realmente - prazer raro esse escondido na fome, quando se sabe saciá-la em breve, claro.
Desci no ponto da minha faculdade. Na cantina, quis acordar as papilas com um ardil, uma pimenta atrevida, coisa rara na minha comida - mais vale como provocação, um adorno pro dia morno de uma chica valente e de bom coração.

7 comentários:

J. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
J. disse...

Ônibus também me trazem reflexões diversas, mas essas normalmente não são resultam em textos doces.

Interessante que no momento escuto Plain Gold Ring... Acabei de conhecer Nina Simone. Fomos apresendadas por Little girl blue. Eu estou apaixonada, não consigo deixar de ouvir. Surpresa minha entrar por um link de um blog que tenho o costume de frequentar e dar de cara com uma imagem dela e um bom texto.

Anônimo disse...

ótimo texto, me fez lembrar os tempo idos qdo eu andava de ônibus ... tenho até estória prá contar ....... quem sabe né?! hehehehehe

bj

Anônimo disse...

seus personagens adoram segurar pacotes na mão!!! no Batom Promiss foi a mesma coisa... hahahhahhaha
beijoo

Anônimo disse...

que lindo! menina "penseira"
abs

Anônimo disse...

me vi falando agora, acho que toda mulher sabe do que vc esta falando... quem ja pegou onibus sabe o que eh ter a mao acariaciada e muito pior dentro do buzu...

Anônimo disse...

Quem anda sempre de carro não sabe o que está perdendo. De vez em quando eu me arrisco, somente para observar, ouvir as conversas entrecortadas pelos barulhos diversos, sacar o que as pessoas lêem... É inspirador quase sempre.