domingo, junho 24, 2007

Do mérito das primeiras impressões

Toda vez acerto na mosca, mas nunca aprendo. O pré-conceito do meu olhar é imbatível e assim mesmo eu dou ouvidos a um anjo que me sopra toda vez: "calminha, nesse diagnóstico". Me basta um olho-no-olho de segundos pra capturar os segredos de alcova do objeto mirado. Eu olho os olhos de alguém e percebo do que se trata aquele ninho de intenções. Claro que isso de maneira precária, subjetiva, se viesse tudo traduzidinho, meu nome era Cigana Padilha e hoje eu estava lendo o fado tropical dos viajantes na rodoviária - o que não seria tão mal, ao menos tiraria uns trocadinhos, melhor lucro do que desta vidinha de blogueira pobre.
Elocubro, rapidamente, este pensamento depois de matutar a última decepção sofrida, fim se semana passado, São João. Culpa dessa costumeira falta de atenção à minha infalível mirada. Eu já sabia que se tratava de uma cretina, aquele ar de histeria contida não me enganava, mas o anjinho apaziguador me guardava, sentado em meu ombro, dizendo baixinho "teiquirise, Juanita". Foi na mosca: a maledita descascou injúrias gratuitas a minha doce pessoa. Aguentei firme e revidei altiva, bebi a parte de licor de jenipapo que me cabia e fui pular outra fogueira!

sexta-feira, junho 08, 2007

Pesadelo chique


Quando ouço “Monalisa”, canção de Jay Livingston e Ray Evans eternizada por Nat King Cole, lembro de minha irmã gêmea. A música fala de uma moça que é tão misteriosa quanto a do sorriso famoso. Sei que minha irmã não entende – as musas nunca entendem bem –, mas mesmo assim, de vez em quando eu canto para ela essa canção com meu inglês ruim e trocando “lisa” por Lígia – “Mona Lígia, Mona Lígia, man have named you…”.
Dias atrás, coloquei um disco de Nat para ouvir no banho, e quando tocou Monalisa, eu fiquei prestando bem atenção à letra. Nessa mesma noite eu li “O Pesadelo”, uma das sete conferências dadas por Jorge Luis Borges e transcritas em seguida para o imperdível livro “As Sete Noites”.
Não se trata de histórias de terror em si, mas de algumas acepções do tema. Em certa altura, Borges descreve o realismo que se configura nos pesadelos e o fato de que um pesadelo pode ser assustador mostrando qualquer imagem. Então, ele exemplifica com dois recorrentes pesadelos seus: no primeiro aparecem máscaras e espelhos; no segundo, um labirinto. Ambos podem parecer menos assustadores se comparados, na vigília, com uma imagem mais representativa do medo, como a do inferno. Mas se compararmos a idéia que fazemos do inferno, acordados, com a sensação real do horror que sentimos durante um pesadelo, o inferno não passa de uma simples câmara de tortura.
Tal mistura de impressões não poderia terminar de outra maneira: ainda nesta noite, eu tive um pesadelo com Nat King Cole!


Contado, meu pesadelo não terá efeito, mas naquela hora pareceu tenebroso.
Não sei onde eu estava, acho que chovia. Havia um policial que me acompanhava na investigação de um assassinato. O clímax do meu terror era eu dar com a morta ensangüentada. Eu era uma peça importante porque conseguia decifrar as entrelinhas do que dizia a letra de uma canção - Monalisa, que no sonho era de autoria de Nat King Cole -, a principal pista do crime. Descubro no fim que ele assassinara a musa inspiradora, uma mulher por quem era apaixonado.
Lembro de ler a letra no sonho e, pensando comigo, matar a charada: “Só um homem tão apaixonado seria capaz de matar a mulher!”. É uma loucura, mas no meu sonho pareceu perfeitamente verossímil...
Quem manda ler textos sobre pesadelo antes de dormir?!

Porque um cavalo? - Na verdade é uma égua. Ainda em "O Pesadelo", Borges expõe sua maravilhosa pesquisa sobre a etimologia de pesadelo em diversos idiomas. Em vários, a exemplo do latino incubus e do grego efialtes, as palavras são nomes de demônios que inspiram o pesadelo. Em espanhol, é parecida com português, pesadilla. Porém é a língua inglesa que possui o vocábulo mais sábio e mais misterioso, nightmare, que Borges, apoiado nos versos de Shakespeare, acredita descender de night mare: égua da noite. Nos versos de Shakespeare: "I met the night mare", "encontrei a égua da noite", ou ainda: "the nightmare and her nine foals", "o pesadelo e seus nove potros", em que ele vê o pesadelo como sinônimo de égua.

E porque se fosse cavalo, eu botava o desenho em azul.

sexta-feira, junho 01, 2007

Uma cilada para a analista

baseado em fatos reaiss

O homem chegou no escritório da analista quando faltavam cinco minutos para a consulta começar. Sentou-se, ofegante, e sem saber o que fazer com aquele tempo, puxou uma das revistas para o joelho e começou a folheá-la sem muito interesse. Havia apenas ele e a recepcionista na sala de espera. Lembrou-se de ter lido que pacientes de analista evitam permanecer muito tempo nos consultórios para que ninguém os flagre. Chegam quase em cima da hora e partem imediatamente depois que a sessão termina.
Sem querer, os olhares dos dois cruzavam a toda hora, e isso começou a incomodar muito o homem. Tinha alguma coisa na moça que não o agradava. Achava o seu olhar insolente. Em seis anos de análise, ele nunca sentiu vontade de trocar palavras que não fossem referentes à sua condição de paciente e à dela de recepcionista.
Mudou de lugar, expirando sonoramente como quem esvazia de uma só vez o pulmão inteiro, de modo a fazê-la perceber o seu incômodo. Sentou-se dando-lhe as costas.
De repente, ela rompe o silêncio para dar um aviso: a Dra. Rosa estava presa num engarrafamento e poderia se atrasar. Surpreendido, ele fez que entendeu, balançando a cabeça rapidamente, mas depois, recompondo-se, morreu de raiva por ela ter falado com cortesia. Não queria cortesias daquela insolente; na verdade queria ter ouvido uma grosseria e ter um motivo para destratá-la de volta, dizer-lhe algo. Fazê-la perder o emprego.
Começara a suar e a balançar as pernas. Suava e balançava as pernas quando ficava nervoso e sabia que a recepcionista conhecia esses sintomas, que anunciavam as crises de outrora. Ele podia jurar que, naquele instante, havia um sorriso de ironia na cara da moça, como se ela julgasse patética a sua agonia. Ele há muito tempo não ficava tão nervoso assim.
Estupefato, ele irrompeu com o dedo levantado e foi em direção ao balcão, gritando:
- Olhe, eu me cansei da sua cara me olhando desse jeito!
- Senhor... por favor, acalme-se! – respondeu, paralisada.
- Acalme-se uma ova. Eu percebo quando você me olha com essa sua cara sonsa. Acha que eu não sei o que você está pensando? Você deve contar a todos, às risadas, que trabalha num lugar onde um paciente maluco aparece de vez em quando para dar suas crises.
Ela já estava interfonando para a segurança quando Dra. Rosa entrou na sala. Devia ter mais de setenta, mas era jovial e tinha a aparência muito saudável; usava um tailleur de linho cinza escuro listrado de preto, os cabelos presos num coque impecável e um par de brincos de pérola. Olhou para aquele homem que berrava e transpirava como um porco que se sabe prestes ao sacrifício e ordenou-lhe, em tom baixo:
- Sr. Aderbal, queira por gentileza dirigir-se à minha sala.
Dentro dela, a doutora fez o nervoso paciente deitar-se no divã. Àquela altura, Aderbal estava com os parafusos da cabeça qual peças perdidas dentro de uma gaveta de ferramentas. De repente, não sabia onde estava; olhava para a doutora e perguntava o que fazia ali. Sequer lembrava-se de seu imbróglio com a recepcionista, minutos atrás. Parou de falar e ficou com a vista imóvel, como se percebesse algo além das janelas da sala. Então sentenciou:
- Gostaria de ir embora. A senhora poderia discar para o piloto do meu helicóptero?
- Que helicóptero, Sr. Aderbal? – respondeu ela, indiferente - acostumada -, enquanto preparava uma injeção tranqüilizante.
- O MEU helicóptero! Eu só saio daqui nele.
“Mais essa agora”, pensou a doutora. Não havia helicóptero algum. Ela tentou aplicar-lhe a injeção, mas o homem reagia mal. Delirava: "Você quer me dar um sonífero para depois roubar o meu helicóptero!". Não queria saber de outra coisa. Enquanto ele bradava pelo paradeiro do veículo, Dra. Rosa pensava no expediente, que terminara duas horas atrás.
Cansada, de súbito, a doutora resolve abandonar seus métodos e declara com o tom sereno de sempre:
- O trânsito de helicópteros hoje está um inferno. São seis da tarde e está o maior congestionamento sobre esses prédios... Ou você acha que é o único que tem helicóptero? Dessa vez você terá que ir pra casa de carro. Quer uma carona?
O pólo sobressaltado, o alter ego da personalidade em crise pôs-se imediatamente em seu lugar, desarmado de argumentos. O moço ficou tão calmo que deu até para aplicar a injeção.
Nada como uma eventual volta à velha psicologia, aquela politicamente incorreta mas que funciona sempre!