segunda-feira, março 30, 2009

A caretice da juventude

Tive que deixar de ser adolescente pra concordar quando meu pai diz que não existe alguém mais careta do que um jovem.
Se pertencer a um grupinho, então piora.
Seus grupos são xenófobos, não aceitam o diferente. Não aceitam o comum. Não aceitam o pagodeiro. Falam mal de absolutamente todos que não têm seus preciosos atributos "in".
Fico tentada a citar exemplos do que eu vejo, mas como sei que o principal defeito desses grupos é a intolerância e a falta de humor, prefiro falar do que eu vi na tv.
Era um episódio daquele programa em que duas mães trocam de família por uma semana. Vai uma pra casa da outra, cumprir todas as tarefas - com exceção das maritais, é claro. Comecei a gostar de ver desde que vi trocas bem interessantes - mãe favelada no lugar de dondoca, família sino-brasileira tradicional recebendo uma mãe nudista, e por aí vai. Na maioria das vezes as experiências pareciam ter sido bem sucedidas. A distância e a convivência com outra realidade fez um pai respeitar a opção sexual do filho, e em outro caso, fez a família ter de novo o diálogo perdido há anos.
A história da semana passada parecia bater os recordes: uma mãe sadomasoquista que morava dentro de uma boite em SP trocou de casa com a dona de casa de uma pacata cidade no Mato Grosso.
Era clara a intenção do casal sadô-masô em chocar. Especulavam a reação dos anfitriãos, ela planejava como "dominaria" a família. No outro lado a mãe, em um almoço de família, dizia estar preparada pra tudo.
O anfitrião da dona de casa preparava ela no caminho até a casa-boite, contando que o lar não era bem tradicional, mas a mulher parecia tranquila. Nao se chocou, realmente, com nada, e muito menos se assustou.
O marido sadô-masô que não ficou muito feliz com a indiferença dela. Começou um jogo de intrigas no estilo Big Brother, em que a dona-de-casa era uma falsa conspiradora, de sorrisinho malicioso, e que ela estava errada em não entrar na "realidade da família", ou seja: praticar os fetiches, como eles!
Enquanto isso, a mãe sadomasoquista experimentava uma semana em que foi muito bem tratada, fez passeios ao ar livre, visitou lugares, e volta e meia confessava às câmeras que não queria voltar a São Paulo, ou que devia repensar a vida que levava na escuridão.
Às vezes, a mãe fetichista falava em tentar "liberar" a "coisa" existente na família que a hospedava. Chegou a tentar. E sua conclusão, unilateral, leva a crer que ela pensa que o sonho escondido de todos os mortais é se "libertar" e poder viver como ela.
A pobre da dona de casa foi humilhada e escurraçada da boite, pelo marido pit-bull que nao aceitava sua naturalidade e simples negação em participar de uma coisa que ela não queria. Assim é que eu vejo como os chamados de caretas são muitas vezes os mais liberais e compreensivos, e os "cabeça-aberta" têm muito o que aprender sobre respeitar a individualidade do outro.

quinta-feira, março 26, 2009

A anti história do cobrador

Um cobrador de ônibus sentado no seu assento, totalmente à vontade, se ajeita quando o ônibus para no ponto. Eu entro e dou boa noite, ele responde um boa noite inesperadamente vivo, simpático. No meu caminho até um banco, cruzo com um velho que leva a mão cheia de moedas, e eu escuto do cobrador:
- Tá certo aqui?
E o velho:
- Tá certinho, dois e vinte.
Viro só pra confirmar o que eu já sabia, que ele sem conferir separaria as de 25, 10 e cinco centavos, botando cada moeda nas partezinhas da caixa de dinheiro. Fico pensando se ele pensou também se faz isso por preguiça ou por saber simplesmente que quem entrega uma mão de moedas raramente dá a soma errada.
Mas vou pensando por mais tempo numa terceira possibilidade. De repente ele teve ali um súbito, inédito acesso de crença na humanindade. Pensou que a vida é muito curta, e que afinal arriscar a confiança é uma chance que damos a nós mesmos. Ou talvez o crédito foi só para aquele velho. Quiçá deduziu que o velho é pobre - e pensou que são os pobres os mais honestos. Talvez ainda por um mistério escondido nos olhos do velho, ou porque o velho é velho, sei lá o que ele pensou. Talvez fui eu com meu boa noite: plin, acendi uma luz. Ou nada disso - na verdade não deve ter acontecido nada, ele em nada pensou, e se na contagem do faturamento faltarem 20 centavos, ele sacode no bolso uma moeda e esquece o assunto para sempre em dois segundos. E isso foi só mais uma besteira que veio assaltar minha mente no tédio de uma volta pra casa.

terça-feira, março 24, 2009

O velho lobo do mar de férias

Foi numa viagem de veleiro que, distraído, nosso amigo levou uma saraivada de vela bem no rosto, mesmo com o tempo bom. Sangrou muito, e de volta à praia do pequeno vilarejo, a pessoa mais próxima de suturar bem o ferimento era o fazedor de redes. Ganhou uma cicatriz imensa e graduada na bochecha, a que deveu até o fim de seus dias o renegado apelido de Curinga. Triste e dolorido, ele acompanhava com pesar a progressão da enorme ruga em seu rosto, que parecia ficar mais funda a cada dia, como a mais funda das rugas. De solteirão misterioso de meia idade, ele passou a se sentir muito mais um lobo idoso que perdeu a luta pra raposa, cabisbaixo, quase humilhado. Isso, é claro, afastou as mulheres. Não tanto pelo novo rasgo nas feições, mas pela tristeza que o Curinga sentia, e emanava, de carregar uma tatuagem espúria por toda a vida.
Até que um dia chegou à vila uma forasteira de mochila, de uns quarenta anos, cabelos longos meio esbagaçados, de vivos e lindos olhos verdes. Curinga se encantou tanto que nem teve coragem de se apaixonar. Foi ela que um dia reparou no coroa tristonho que vivia errando sozinho, perto dos barcos, sem se aproximar de uma alma viva. Ela achou ele tão bonito que procurou um meio de puxar um fio de prosa. Só quando se aproximou dele, viu a face lacerada, como o sorriso forjado de um palhaço triste. Ele também viu que ela viu, e tratou logo de se virar de costas.
- Você tem uma barba bonita, cheia, ela falou.
- É, a barba nem cresce mais nesse lugar.
- Isso é um sinal de que você não é igual a ninguém, ela falou.
E a partir daí viveram juntos, pescaram juntos, se esquivaram de saraivadas de vela juntos - ela, a forasteira velha, como a raposa que ganhou a luta; ele, o misterioso curinga, o velho lobo do mar, mas de férias da velhice para sempre.