sábado, dezembro 20, 2008

Muito tempo

Eu sei. Saí sem avisar. Aliás, como sempre. Digo "vou ali e volto já" e desapareço.
Foi assim que eu vim pra cá: a menos de um mês de fazer essa viagem a Londres, com raras exceções, quase ninguém sabia que eu vinha. E isso inclui pai, irmãos, tios, quase todos os amigos.
Foi assim também com esse blog, que eu agora relendo, acho que mais parece um diário adolescente.
E não era? Talvez. Embora não relate exatamente a realidade, sempre haverá coisas da minha própria vida relacionadas às histórias daqui.
Lembro do meu fascínio na recém-descoberta dos blogs. A incrível troca direta que pode existir numa caixa de comentários. A rapidez de como tudo se forma, discussões, idéias, conhecimento.

Ok, não é só porque eu estou entediada e naqueles dias em que mesmo tendo um monte de coisas pra resolver simplesmente não movo uma palha, que resolvi escrever de volta ao "La vie". Foi um sentimento que bateu de repente. Como o de agora, quando eu me dei conta de que conheci várias pessoas legais e que provavelmente nunca mais eu as verei. E assim a vida vai continuar, cada um pra o seu lado, sem ninguém ter uma pista do que foi feito, amigo.

Isso é triste e ao mesmo tempo natural. E gostoso. Tenho que saber que vai acontecer sempre - isto é, se o plano der certo, que é o de não parar de viajar nunca. E que milhares de pessoas extraordinárias cruzam os destinos umas das outras, mas isso não significa que isso vai durar. São poucos os destinos que depois de um esbarrão se endireitam em linhas paralelas.

Chega de filosofia barata. Quero só dizer que voltei, tô afim de ver o que vai sair da minha cabeça e desses dedos em frangalhos - que retrocesso, eu voltei não só a roer as unhas como a destruir a pele ao redor delas. Quero ver se vou ter coragem de publicar. Quero ver, quero ver. E vocês, vão querer?

quarta-feira, abril 30, 2008

O bom barulho


Fácil esquecer uma dor ou incômodo que já passou. Uma cãibra que faz a gente chorar por dez segundos, precede um quase imediato desprezo pelo sofrimento sentido. Um calo apertado num sapato duro, depois de tirado o sapato, é como se desaparecesse. Pernas dormentes por horas em pé e um corpo pedindo cama deveriam reverenciar solenemente o próximo leito... Mas, simplesmente, a gente se atira ao colchão, à revelia, e dorme profundamente o mais ordinário dos sonos.
Noite passada, quando o avião começou a aterrissar, os meus ouvidos taparam, como de costume. Saquei da bolsa os chicletes que comprei especialmente para o momento, mas dessa vez não adiantou. À medida que a aeronave perdia altitude, eu ficava mais surda, e então, pela primeira vez em anos, comecei a sentir verdadeiramente uma dor de ouvido.
Ao meu lado, uma senhora, falante compulsiva - que até me entreteve quando eu cansava de Hemingway em O Velho e o Mar, mas que neste exato instante de sofreguidão me fez querer tacar fogo naquela cara horrível dela e apagar com um tamanco –, olhou pra mim e achou graça em alguma coisa. Talvez porque eu dizia, quase em transe, “eu vou morrer de dor”. Ela parecia me imitar, tapando os ouvidos, e às vezes rindo. Velha maluca. Eu desconfiei desde que a vi se empolgar demais pra falar de como, do Oiapoque ao Chuí, os brasileiros são diferentes, e de como ela detestava os nascidos em São Paulo.
- Mas menina, paulista é um horror! – ela disse.
- Ainda não conheci muitos – respondi.
E então ela, quase gritando:
- Nossa, eu ODEIO paulista! São muito antipáticos! Insuportáveis!
- Melhor a senhora falar mais baixo, senão a gente apanha – aconselhei.
Na apoteose da dor, hora do pouso, a carioca maluca me chamou pra ver de cima a minha cidade. De noite, com o céu nublado, e mesmo eu com a cara de uma elefanta parindo. Falei qualquer coisa alto demais por causa da surdez e esperei que a dor passasse. O avião pousou. Decidi então, como se pudesse: “quando as portas se abrirem, o ouvido vai destapar”.
Abriram, saímos do avião, peguei a mala, encontrei minha mãe e disse:
- Mãe, estou surda!
Dormi surda, me acordei surda e irritada. Não saí de casa até a hora de ir para a faculdade. Os barulhos do mundo, ou a falta deles, nunca me incomodaram tanto. O capital se esborrachando lá fora e eu isolada na minha bolha acústica, pescando menos da metade de todos os sons e estimando como nunca minha valiosa maquininha de capturar música.
E então, horas depois, dentro da sala de aula, na placidez mais bovina, sem anúncio, e como por milagre, tloc!, meu ouvido destapou!
Soltei aquele riso frouxo que me escapa e me embaraça toda vez que estou sozinha dentro de um ônibus ou andando nas calçadas, e me lembro de qualquer coisa engraçada. Repito em vão o mantra “Joana não ria, não ria”. Mas dessa vez eu me deixei rir, e falei pra todo mundo “gente, meu ouvido acaba de destapar, eu não ouvia desde ontem!”. Meus colegas não deram muita importância, e “Jô, como você é besta!” foi o que eu mais ouvi. Mas eu ouvi. :)

quinta-feira, abril 10, 2008

O dia em que eu dancei "Não vale mais chorar por ele"


Toda vez que encontro meu amigo Wallie, cujas madeixas e barba ruivas colocariam qualquer viking no chinelo, a gente se dá um abraço, com direito a "beijo cheirado" no pescoço um do outro, e aí eu lanço às gargalhadas um tórrido estímulo à sua memória: "E bote aê! Bote aê, bote aê, bote aê...". Ele ri um riso nervoso e revida "Não vai esquecer nunca, né?".
Não vou esquecer mesmo. Não é todo dia que se consegue arrastar o maior metaleiro da cidade para um ensaio da Xinelada (com xis mesmo), a então banda do pagodeiro Beto Jamaica. Foi há um ano e meio, quando novas e inusitadas descobertas escancaravam as portas da minha percepção. E uma vez aberta, através dela passou de tudo, algumas coisas boas, outras nem tanto. Mas, ao contrário do que deve ter concluído meu público de bon goût, Xinelada entrou pro rol dos bons achados.
Eu sentia um fastio de shows e festinhas e não acreditava que aos 19 minha fase festeira já tivesse passado. O problema é que eu achava tudo igual. A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim. Cheio de ervas daninhas. Nada de novo. As mesmas conversas chatas. Os caras inúteis. As roupinhas descoladas. Musiquinhas, bandinhas. Sair pra quê?
Então, entregue à sorte de um domingo nublado, desgostosa e vulnerável, fui "capturada": aceitei o convite de umas amigas e fui checar com meus negros olhos o supracitado ensaio, já imaginando a piada que seria - afinal, só poderia ser de brincadeira, imagina, eu ir pra um show de pagode.
Lá, adivinhem: sambei como nunca, bebi como há muito não fazia, ri à beça e só vi pessoas rindo. E não foi brincadeira. Todo mundo vestido do jeito que queria. Gente simples, playboys, peruas, tinha de tudo, a única lei era se divertir. Acho que foi aí que eu comecei a entender o que eu procuro numa festa, mas ainda não sei completamente.
Na semana seguinte fui lá de novo. E na terceira, com várias amigas pra ajudar, consegui levar Wallie, que acabou gostando também, eu tenho certeza - apesar de não admitir nem sob tortura.
E agora, neste feriado de semana santa que passou, quis o destino que eu me lembrasse da história logo em Moreré. No sábado de Aleluia, a sensação da vila era o show do Paixão Cigana, grupo de arrocha puríssimo. E lá, com mon chéri a tiracolo e a vila inteirinha, de crianças a velhinhos, eu dancei, bebi, caí, levantei, cantei "não vale mais chorar por ele", e prometi pra mim mesma nunca mais perder uma dessa.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Ai, minha doce janela

Mesmo eu pedindo clemência e alegando sofrer de alergias pneumáticas crônicas, minha mãe, impávida, adotou ontem, como se eu merecesse castigo, não um, mas dois gatos.
Não obstante, invadiu meu território e quadriculou com uma abominável rede preta a minha até então livre e linda vista para o mar.
Os dois filhotes do cão estão dormindo agora como se fossem anjos. Mas, quem quiser que tenha pena. Tem uma bola de papel e meia que eu atiro sem dó neles a cada espirro que dou. Só eu sei o que foi acordar no meio da noite com essas duas pestes miando, brincando com o meu cabelo, dando voadoras e pinotes fantasmagóricos na penumbra, apavorando o meu sono, ultimamente tão raro.
São gatos de rua recolhidos por um abrigo. Minha irmã disse que nunca tomaram banho e nem são vacinados (não têm idade). Pra piorar, aproveitou pra falar de um amigo que pegou toxocoplasmose – aquela enfermidade terrível em que cresce alguma coisa dentro do cérebro, não sei, um cisto, um fungo, e a pessoa fica cega -, e ele nem sequer se aproxima de gatos. Vida ingrata! Outro dia um amigo me contou da madrasta italiana que, aos vinte anos e casada com um pernicioso fumante, adquiriu um câncer pulmonar sem nunca ter encostado um filtro pardo na boca.
Com a óbvia exceção da criação de peixes beta, é claro que animais não servem pra viver em apartamentos. Soltam pêlos, transmitem doenças, provocam alergias e no fim, ou bem acabam neuróticos, ou provocando a neurose alheia.
Eu não detesto bichos, pelo contrário. Quem acompanha este blog sabe que há algum tempo, através de um post sutilmente embargado de lágrimas, eu comuniquei a morte do gato que aqui morava. Mas Trotski era inofensivo, e antes de tudo, entrou na minha vida antes que eu refletisse sobre a divisão do meu habitat com um animal sem polegar opositor. Agora, isenta da emoção que me fez lamentar seu trágico fim, e sofrendo a implacável alergia que ele me deixou de herança, eu afirmo sem culpa que de certa forma me livrei do bichano quando este alcançou o térreo do prédio sem usar o elevador. Do décimo primeiro andar, coitado.
Acabo de me lembrar de um episódio de quase dez anos atrás. Na quinta série, Aninha e eu éramos as melhores amigas do mundo, e por isso, quando ela ganhou um hamster, eu pintei o terror e também consegui adquirir um. Era divertido confabular com Ana sobre as bobagens que Anfteuton (o meu) e o rato dela, cujo batismo agora me foge, faziam. Tudo sempre associado a comida ou a coisas nojentas: “O meu ontem vomitou um milho!”, “O meu cagou uma semente de girassol!”.
Um dia, Ana perdeu o bichinho dentro do próprio apartamento. Procurou por todos os cantos e nada – afinal, se há uma coisa que um rato deve saber fazer é se esconder. Ao cabo de dois dias, a irmã de Ana teve uma brilhante idéia: espalhar pequenas porções de ração pela casa, a fim de atrair o desertor para o seio da família novamente.
Passada uma semana, Aninha já havia esquecido o assunto.
Neste mesmo dia, durante a madrugada, ela escutou da cama um barulho estranho. Acendeu a luz e foi ver o que era. Lá estava. Era o ratinho, se fartando de ração, comendo vorazmente, e na surdina, como o rato que era. Aninha, que não era fácil, apanhou o bicho com as duas mãos, olhou para ele, pensou “Acho que eu não quero mais isso pra mim” e facilitou a fuga do animal, colocando este sobre o parapeito da janela do 26° andar.
Quando ela contou, eu não acreditei. Abalada por este trauma, nossa amizade nunca mais foi a mesma: desde então associo estranhamente a imagem de Ana ao sanguinolento Macaulay Culkin em “Anjo Malvado”.
Pensando bem, dizem que é até doce a morte de quem se desintegra à velocidade do vento. Como os suicidas nos arranha-céus.
Olhando estes dois felinos que dormem, penso que não é má a idéia.
(Brincadeira, mãe.)

PS: Os bichinhos não têm nome, e pelo andar da carruagem um batizado abominável irá se consumar nos próximos dias: minha irmã sugeriu, pasme, “Bob e Marley”; a outra, dois nomes que a princípio cogitei, depois julguei fanáticos demais, “Fellini e Truffaut”. O máximo que eu consegui foi “Calvin e Haroldo”, mas não pegou. Sugeri ainda “Cairo e Alepo”, duas cidades que ainda vou conhecer, mas fui imediatamente censurada. Gosto também de “Apolo”. Vamos, me ajudem! Aguardo sugestões.

domingo, janeiro 27, 2008

Só mais uma segunda-feira

Do lado de cá da rua, podia-se ver o letreiro de neon com o nome Karol's ainda aceso, piscando. Mesmo com o dia já iluminando a noite fria. Do lado de lá alguém viria que Antenor (lia-se bem grande em sua camisa), sentado na calçada e com os cotovelos sobre os joelhos parecia esperar alguma coisa ou alguém sair de dentro da porta vermelha.
Ele não torceu o nariz nem ensaiou mudar de lugar quando um caminhão de lixo parou na esquina do Karol's. Um cachorro quis fuçar um saco aberto e um dos recolhedores espantou-o com um chute, mas o bicho não protestou - a complacência dos vira-latas. Os rapazes que carregaram o lixo fizeram seu trabalho sem verdadeiramente perceber que havia uma pessoa ali. Se viram, confundiram aquele corpo inerte com o resto da paisagem e seguiram adiante.
Antenor bebia os goles finais de uma cerveja morna, a sexta desde que chegara ali. Com as outras cinco garrafas ele já havia feito um truque, a brincadeira musical em que se bate a chave nos corpos das garrafas quando cada uma contém uma quantidade diferente de líquido. Um tempo depois ele deixou duas delas rolarem pelo asfalto e sentiu uma migalha de vidro acertar sua bochecha quando um ônibus passou pela rua, mas não chegou a se cortar.
Antenor tinha relógio, mas não o olhava. Não era pressa o que ele tinha.
Da sacada da minha janela, vendo aquele homem assim, eu apostei todas as minhas fichas que uma mulher sairia por aquela porta rubra e por algum motivo o faria levantar-se.
De fato, não poderia-se dizer que este observador que do quinto andar vos fala teria tanto azar no jogo assim: afinal foi uma mulher - dona Maria, a dona da cafeteria - quem abriu a porta para que o garçom meio bêbado, meio sonolento e inexperiente se levantasse para começar o novo expediente.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Homem e mulher no telefone às duas da madrugada


“Você sabe, a minha vida é uma caravela cheia de tentáculos”, eu disse.
“Não sei o que fazer com tanta saudade”, ela disse.
“Põe numa garrafa e joga ela no mar. Quem sabe vai parar na Antártida”, eu disse.
“Você não me leva a sério”, ela disse.
“Eu te levo pra andar por aí”, eu disse.
“Vamos andar por aí”, ela disse.
“E ir até o mar em silêncio tomando uma cerveja. E molhar os pés na água gelada”, eu disse.
“Quem sabe chega uma garrafa cheia de saudade”, ela disse.
“De um esquimó que perdeu a moça ou a touca”, eu disse.
“Eu derramaria a garrafa em sua cabeça e te sopraria um feitiço”, ela disse.
“Sua macumbeira”, eu disse.
“Seu cretino amado”, ela disse.
“Está tocando aquela música”, eu disse.
“Estou escutando daqui”, ela disse.
“Fiquei nervoso, fala alguma coisa”, eu disse.
“Você me deve um saco de caramelos”, ela disse.
“Você me deve um strip-tease”, eu disse.
“O que você vai fazer agora?”, ela disse.
“Vou me jogar da janela e já volto”, eu disse.
“Tomar estricnina pra esquecer essa menina”, ela disse.
“E um calmante, um excitante, e um bocado de gim”, eu disse.
“Se você estivesse aqui seria muito bueno”, ela disse.
“Eu vou te visitar daqui a pouco num sonho bom”, eu disse.
“Por favor, não venha num cavalo branco”, ela disse.
“Estou mais pra pangaré. Eu o pangaré e você no meu lombo”, eu disse.
“Vou sonhar que sou o Atacama e você um camioñito de perdidas arenas. Nem tenho pena do tanto de viagens que você vai ter que fazer”, ela disse.
“Nunca sonhei com você”, eu disse.
“Deus te protege de um infarto noturno e fulminante”, ela disse.
“Chata, mas engraçadinha”, eu disse.
“Eu tenho os meus momentos”, ela disse.
“E nós só temos mais uns cinco minutos de prosa”, eu disse.
“E aí game over, como o combinado”, ela disse.
“Combinado, registrado e carimbado num contrato selado com amor”, eu disse.
“Quem diria que essa história ia acabar com as unidades de um cartão telefônico”, ela disse.
“Quem diria tanta coisa, meu amor”, eu disse.
“Tomara que um dia a gente possa ser amigos”, ela disse.
“Tomara que um dia a gente possa estragar essa amizade”, eu disse.
“Sua vida é uma caravela e a minha é uma água-viva. Eu sou uma sardinha e você é um peixe-banana”, ela disse.
“Ela me detesta. Um beijo na boca”, eu disse, e ela disse “Um beijo na testa”.