sábado, dezembro 15, 2007

"Dai-me vinho que a vida é nada"

Às cinco horas do dia seis de fevereiro de 1972, quando voltava do trabalho pelo caminho menos turbulento e mais longo que o ônibus cumpria contornando a orla da cidade, Elton, de súbito, sentiu entrar pela janela um olor insuspeito de mangas maduras (o cheiro da sua infância); ouviu Chico Buarque cantar “Tem mais samba” em um pequeno toca-fitas, vindo do fundo – ninguém ignora que as canções pescadas sem aviso, sobretudo por um rádio, causam uma emoção extra – e decidiu, pleno de sentimentalidades, que precisava mesmo naquele instante fazer alguma coisa que valesse pelo resto de seu dia.
Pensar que todo homem é uma ilha - ele corrigia a frase para si, no íntimo- era escusa para justificar o seu eterno prazer de fazer tudo desacompanhado de quem quer que fosse. Ao saltar numa praça com velhinhos e pombos colorida pela luz do fim de tarde, Elton deixou cair uma lágrima e seguiu, passos sóbrios e sorriso de canto, para a mesa de um café disposta numa larga calçada.
Pediu café, cigarros, uma empada de bacalhau e o disco de Nina Simone para tocar.
Bebeu metade, tragou pouco – a pólvora da seda do cigarro foi mais veloz que o fumante embriagado dos próprios pensamentos – e ficou decidindo, diante de um naco e um gole, se seria melhor o gosto do expresso ou da empada por último na boca. Fora isso, sua cabeça não se atarefava de quase nada: de repente não existia trabalho, relatórios, filho, mulher, mãe doente, guerra ou fome no mundo. Talvez existisse música, ou poesia. Nenhum pensamento. Uma brisa fresca que soprava secou pequenas gotas que brotaram na testa. Um pingo vindo de onde acertou a mesa; ele esmagou a pequenina com o indicador direito. Deixou o dobro do valor debaixo do pires e seguiu andando para casa.
No sobrado modesto, trinta minutos depois, achava-se sentado na poltrona da varanda calçando seus velhos chinelos. Tinha um copo baixo de uísque sem gelo em uma das mãos. Devagar, caminhou até a porta de cada cômodo e, como quem se despede, fitou a sala e a cozinha; depois passou pelo dormitório do herdeiro e se deteve finalmente à porta do próprio quarto. Demorou olhando o leito bem arrumado para ele e a mulher, como um símbolo de paz plena e felicidade. Sentou na beira da cama, alcançou a última gaveta do armário e desembalou de duas caixas e duas velhas camisas uma Ortgies calibre 8 automática. Pôs uma bala, girou o tambor, cogitou não beber mas deu o ardido gole final, mirou a fronte, um pouco à direita, e pela primeira e última vez na vida foi sorteado por uma roleta.