quarta-feira, abril 30, 2008

O bom barulho


Fácil esquecer uma dor ou incômodo que já passou. Uma cãibra que faz a gente chorar por dez segundos, precede um quase imediato desprezo pelo sofrimento sentido. Um calo apertado num sapato duro, depois de tirado o sapato, é como se desaparecesse. Pernas dormentes por horas em pé e um corpo pedindo cama deveriam reverenciar solenemente o próximo leito... Mas, simplesmente, a gente se atira ao colchão, à revelia, e dorme profundamente o mais ordinário dos sonos.
Noite passada, quando o avião começou a aterrissar, os meus ouvidos taparam, como de costume. Saquei da bolsa os chicletes que comprei especialmente para o momento, mas dessa vez não adiantou. À medida que a aeronave perdia altitude, eu ficava mais surda, e então, pela primeira vez em anos, comecei a sentir verdadeiramente uma dor de ouvido.
Ao meu lado, uma senhora, falante compulsiva - que até me entreteve quando eu cansava de Hemingway em O Velho e o Mar, mas que neste exato instante de sofreguidão me fez querer tacar fogo naquela cara horrível dela e apagar com um tamanco –, olhou pra mim e achou graça em alguma coisa. Talvez porque eu dizia, quase em transe, “eu vou morrer de dor”. Ela parecia me imitar, tapando os ouvidos, e às vezes rindo. Velha maluca. Eu desconfiei desde que a vi se empolgar demais pra falar de como, do Oiapoque ao Chuí, os brasileiros são diferentes, e de como ela detestava os nascidos em São Paulo.
- Mas menina, paulista é um horror! – ela disse.
- Ainda não conheci muitos – respondi.
E então ela, quase gritando:
- Nossa, eu ODEIO paulista! São muito antipáticos! Insuportáveis!
- Melhor a senhora falar mais baixo, senão a gente apanha – aconselhei.
Na apoteose da dor, hora do pouso, a carioca maluca me chamou pra ver de cima a minha cidade. De noite, com o céu nublado, e mesmo eu com a cara de uma elefanta parindo. Falei qualquer coisa alto demais por causa da surdez e esperei que a dor passasse. O avião pousou. Decidi então, como se pudesse: “quando as portas se abrirem, o ouvido vai destapar”.
Abriram, saímos do avião, peguei a mala, encontrei minha mãe e disse:
- Mãe, estou surda!
Dormi surda, me acordei surda e irritada. Não saí de casa até a hora de ir para a faculdade. Os barulhos do mundo, ou a falta deles, nunca me incomodaram tanto. O capital se esborrachando lá fora e eu isolada na minha bolha acústica, pescando menos da metade de todos os sons e estimando como nunca minha valiosa maquininha de capturar música.
E então, horas depois, dentro da sala de aula, na placidez mais bovina, sem anúncio, e como por milagre, tloc!, meu ouvido destapou!
Soltei aquele riso frouxo que me escapa e me embaraça toda vez que estou sozinha dentro de um ônibus ou andando nas calçadas, e me lembro de qualquer coisa engraçada. Repito em vão o mantra “Joana não ria, não ria”. Mas dessa vez eu me deixei rir, e falei pra todo mundo “gente, meu ouvido acaba de destapar, eu não ouvia desde ontem!”. Meus colegas não deram muita importância, e “Jô, como você é besta!” foi o que eu mais ouvi. Mas eu ouvi. :)

quinta-feira, abril 10, 2008

O dia em que eu dancei "Não vale mais chorar por ele"


Toda vez que encontro meu amigo Wallie, cujas madeixas e barba ruivas colocariam qualquer viking no chinelo, a gente se dá um abraço, com direito a "beijo cheirado" no pescoço um do outro, e aí eu lanço às gargalhadas um tórrido estímulo à sua memória: "E bote aê! Bote aê, bote aê, bote aê...". Ele ri um riso nervoso e revida "Não vai esquecer nunca, né?".
Não vou esquecer mesmo. Não é todo dia que se consegue arrastar o maior metaleiro da cidade para um ensaio da Xinelada (com xis mesmo), a então banda do pagodeiro Beto Jamaica. Foi há um ano e meio, quando novas e inusitadas descobertas escancaravam as portas da minha percepção. E uma vez aberta, através dela passou de tudo, algumas coisas boas, outras nem tanto. Mas, ao contrário do que deve ter concluído meu público de bon goût, Xinelada entrou pro rol dos bons achados.
Eu sentia um fastio de shows e festinhas e não acreditava que aos 19 minha fase festeira já tivesse passado. O problema é que eu achava tudo igual. A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim. Cheio de ervas daninhas. Nada de novo. As mesmas conversas chatas. Os caras inúteis. As roupinhas descoladas. Musiquinhas, bandinhas. Sair pra quê?
Então, entregue à sorte de um domingo nublado, desgostosa e vulnerável, fui "capturada": aceitei o convite de umas amigas e fui checar com meus negros olhos o supracitado ensaio, já imaginando a piada que seria - afinal, só poderia ser de brincadeira, imagina, eu ir pra um show de pagode.
Lá, adivinhem: sambei como nunca, bebi como há muito não fazia, ri à beça e só vi pessoas rindo. E não foi brincadeira. Todo mundo vestido do jeito que queria. Gente simples, playboys, peruas, tinha de tudo, a única lei era se divertir. Acho que foi aí que eu comecei a entender o que eu procuro numa festa, mas ainda não sei completamente.
Na semana seguinte fui lá de novo. E na terceira, com várias amigas pra ajudar, consegui levar Wallie, que acabou gostando também, eu tenho certeza - apesar de não admitir nem sob tortura.
E agora, neste feriado de semana santa que passou, quis o destino que eu me lembrasse da história logo em Moreré. No sábado de Aleluia, a sensação da vila era o show do Paixão Cigana, grupo de arrocha puríssimo. E lá, com mon chéri a tiracolo e a vila inteirinha, de crianças a velhinhos, eu dancei, bebi, caí, levantei, cantei "não vale mais chorar por ele", e prometi pra mim mesma nunca mais perder uma dessa.