quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Ai, minha doce janela

Mesmo eu pedindo clemência e alegando sofrer de alergias pneumáticas crônicas, minha mãe, impávida, adotou ontem, como se eu merecesse castigo, não um, mas dois gatos.
Não obstante, invadiu meu território e quadriculou com uma abominável rede preta a minha até então livre e linda vista para o mar.
Os dois filhotes do cão estão dormindo agora como se fossem anjos. Mas, quem quiser que tenha pena. Tem uma bola de papel e meia que eu atiro sem dó neles a cada espirro que dou. Só eu sei o que foi acordar no meio da noite com essas duas pestes miando, brincando com o meu cabelo, dando voadoras e pinotes fantasmagóricos na penumbra, apavorando o meu sono, ultimamente tão raro.
São gatos de rua recolhidos por um abrigo. Minha irmã disse que nunca tomaram banho e nem são vacinados (não têm idade). Pra piorar, aproveitou pra falar de um amigo que pegou toxocoplasmose – aquela enfermidade terrível em que cresce alguma coisa dentro do cérebro, não sei, um cisto, um fungo, e a pessoa fica cega -, e ele nem sequer se aproxima de gatos. Vida ingrata! Outro dia um amigo me contou da madrasta italiana que, aos vinte anos e casada com um pernicioso fumante, adquiriu um câncer pulmonar sem nunca ter encostado um filtro pardo na boca.
Com a óbvia exceção da criação de peixes beta, é claro que animais não servem pra viver em apartamentos. Soltam pêlos, transmitem doenças, provocam alergias e no fim, ou bem acabam neuróticos, ou provocando a neurose alheia.
Eu não detesto bichos, pelo contrário. Quem acompanha este blog sabe que há algum tempo, através de um post sutilmente embargado de lágrimas, eu comuniquei a morte do gato que aqui morava. Mas Trotski era inofensivo, e antes de tudo, entrou na minha vida antes que eu refletisse sobre a divisão do meu habitat com um animal sem polegar opositor. Agora, isenta da emoção que me fez lamentar seu trágico fim, e sofrendo a implacável alergia que ele me deixou de herança, eu afirmo sem culpa que de certa forma me livrei do bichano quando este alcançou o térreo do prédio sem usar o elevador. Do décimo primeiro andar, coitado.
Acabo de me lembrar de um episódio de quase dez anos atrás. Na quinta série, Aninha e eu éramos as melhores amigas do mundo, e por isso, quando ela ganhou um hamster, eu pintei o terror e também consegui adquirir um. Era divertido confabular com Ana sobre as bobagens que Anfteuton (o meu) e o rato dela, cujo batismo agora me foge, faziam. Tudo sempre associado a comida ou a coisas nojentas: “O meu ontem vomitou um milho!”, “O meu cagou uma semente de girassol!”.
Um dia, Ana perdeu o bichinho dentro do próprio apartamento. Procurou por todos os cantos e nada – afinal, se há uma coisa que um rato deve saber fazer é se esconder. Ao cabo de dois dias, a irmã de Ana teve uma brilhante idéia: espalhar pequenas porções de ração pela casa, a fim de atrair o desertor para o seio da família novamente.
Passada uma semana, Aninha já havia esquecido o assunto.
Neste mesmo dia, durante a madrugada, ela escutou da cama um barulho estranho. Acendeu a luz e foi ver o que era. Lá estava. Era o ratinho, se fartando de ração, comendo vorazmente, e na surdina, como o rato que era. Aninha, que não era fácil, apanhou o bicho com as duas mãos, olhou para ele, pensou “Acho que eu não quero mais isso pra mim” e facilitou a fuga do animal, colocando este sobre o parapeito da janela do 26° andar.
Quando ela contou, eu não acreditei. Abalada por este trauma, nossa amizade nunca mais foi a mesma: desde então associo estranhamente a imagem de Ana ao sanguinolento Macaulay Culkin em “Anjo Malvado”.
Pensando bem, dizem que é até doce a morte de quem se desintegra à velocidade do vento. Como os suicidas nos arranha-céus.
Olhando estes dois felinos que dormem, penso que não é má a idéia.
(Brincadeira, mãe.)

PS: Os bichinhos não têm nome, e pelo andar da carruagem um batizado abominável irá se consumar nos próximos dias: minha irmã sugeriu, pasme, “Bob e Marley”; a outra, dois nomes que a princípio cogitei, depois julguei fanáticos demais, “Fellini e Truffaut”. O máximo que eu consegui foi “Calvin e Haroldo”, mas não pegou. Sugeri ainda “Cairo e Alepo”, duas cidades que ainda vou conhecer, mas fui imediatamente censurada. Gosto também de “Apolo”. Vamos, me ajudem! Aguardo sugestões.