quarta-feira, maio 23, 2007


O Gorgulho

Certa vez, quando revirava tranqueiras esquecidas nalgum canto de minha casa, deparei com uma montanha de revistinhas de uma antiga coleção de minha mãe, talvez as sobras da livraria do tempo de meus pais casados. Meio ao acaso, peguei uma Chiclete com Banana, velha revista de quadrinhos e textos feita pelo Angeli e outras feras. Naquela edição eu encontrei um pequenino texto que marcou a minha vida. A revista se perdeu entre as arrumações e empréstimos que vivo fazendo, mas alguns trechinhos da história carimbaram para sempre a massa acinzentada desta que vos escreve.
A trama é simples: trata-se de um gorgulho (aquele bichinho que dá em sacos de macarrão guardados por muito tempo) cansado da monotonia vegetariana e da vidinha mansa entre sacos de cereais. Um dia, esse "penseroso coleóptero" decide expandir seu horizonte gastronômico. Ouvira falar do sangue, iguaria rara de muitas propriedades nutritivas e tentara imaginar que sabor teria. Pensava, curioso, na maravilha suculenta de um jorro rubro a lhe inundar o paladar... Hummm! Solitário e dotado de notável esperteza, o Gorgulho parte para espetar o próprio abdome com o seu bico-lança, provando do seu sanguinho e tornando-se assim um gorgulho auto-suficiente! Não é genial?
Meu achado deve estar fazendo seu terceiro aniversário. E desde que aprendi a usar a internet que venho tentando, através do oráculo Google e de outros tantos, entre combinações impossíveis e vãs palavras-chave, encontrar algo que me leve de volta àquela linda historinha, tão curtinha e tão memorável. Mas até agora nada encontrei.
Semana passada eu li o Livro de Versos de Rubem Braga (Edições Pirata do Recife), uma grande leitura. O prefácio, feito por um amigo seu cuja alcunha agora me foge, comenta uma crônica em que o escritor relata ter gravado, sem mais nem porquê, alguns versos do colombiano Aurélio Arturo: "Trabajar era bueno en el sur, cortar los árboles, hacer canoas de los troncos". Braga lembrava disso em várias ocasiões de sua vida; de repente, ao fazer algo, os versos lhe ocorriam. Versos compostos por palavras simplórias e cotidianas, mas que o tocavam profundamente. Ele arremata o texto tentando decifrar o indecifrável, que seria onde se esconde o mistério da poesia.

No prefácio, seu amigo completa com uma informação surpreendente: um dia, em viagem à Colômbia, Braga ganha de presente de amigos poetas uma antologia de Arturo. Imediatamente ele se lembra e começa a recitar aqueles versos: “Trabajar era bueno...” e os amigos, ao ouvir, recitam junto com ele, em coro. O mesmo poema de palavras simples havia marcado a vida de várias pessoas.
Claro que ao ler isto eu lembrei da história do meu gorgulhinho. Será que outro que leu também lembra dele? Como com Braga, um texto simples me marcou por algum motivo que não sei bem qual, talvez pelo humor, não sei. Pena eu não me lembrar sequer o nome do autor.
Há duas semanas, fiz um poema que fala de um tamanduá que resolve virar vegetariano, bem o oposto do meu sanguinolento coleóptero, e há um mês, mais ou menos, tentei escrever também uma continuação pro Gorgulho, ele em nova peripécia, dessa vez arranjando um amigo gondoleiro que transporta sacos de mantimentos nos porões de uma embarcação pelos canais de Veneza – finérrimo! Pensei em sacos de pistache. Será que gorgulho come pistache?

terça-feira, maio 15, 2007

De novo, no ônibus

Outra ventania de lascar e meu vestido esvoaçava em sintonia com os vácuos de arrancada de buzu, assobios e sopradas. Com apenas uma mão livre, eu tentava conter os panos num gesto que não impediu minha bunda de estampar a avenida manolo days algumas várias vezes. Torci pra ser o do meu ônibus o barulho de motor que dobrava a esquina, e era.
Entrei, sentei e senti um abafamento. As pessoas tinham medo do vento e lacravam as janelas, mas eu tava agitada com a peleja contra o vento e morta de calor. Vagou um lugar à janela e eu fui me sentar nele. Abri-a um pouquinho...
Começou a romaria, pensei, quando vi o primeiro vendedor ambulante subir pela frente (na verdade foi o segundo, tinha um vendedor de picolé que estava trocando um dinheiro com o cobrador na hora que eu passei na borboleta).
Borboleta, às vezes sai um nome lindo desse pra uma coisa chata dessa.
O sujeitinho, um garoto bochechudo e de voz boa, me fez fechar o livro e prestar atenção no que dizia.
Falava eloqüente, com apelos rebuscados, cheio de vivência; parecia um velho no corpo de um moleque, fora do tom como uma voz de menina em um barbudão. Pedia pra gente ajudar ele com algum ($) dizendo: "É da natureza humana a solidariedade".
Quase comprei, mas eram amendoins e eu queria chocolate.
O terceiro vendedor entrou no ônibus na metade do meu caminho.
Vendia drops, balas molengas, balas geladas, confeitos, jujuba e chocolate. Fiz sinal com a sobrancelha e quando ele se emparelhou à minha fila, perguntei:
- Quanto é o chokito?
- Um e trinta.
- Hum... - soltei, pensando em interromper a operação cata-moedinhas.
- Eu faço por um real.
- Tá certo, quero um.
Ora, chokito é um real. Há um tempão! Droga de inflação... Mas depois eu fiquei pensando... que pra mim não custava, que pra ele devia fazer diferença.
E segui pra faculdade, pensando nessas besteiras como pequenos crimes que eu sempre cometo.

segunda-feira, maio 07, 2007


A nova lenda de Tristão

Tristão era o último homem da civilização Momocata, mas não sabia disso até retornar à sua terra e encontrá-la devastada.
Distante, passou cinco anos bem vividos - teve que recorrer à memória para se consolar. Escreveu um livro. Construiu um barco e nele navegou o estreito de Gibraltar. Curou o melhor rum do universo, com canas frescas que cultivou e triturou no próprio quintal, quando aprendiz de um cigano do Caribe. Fez suas vezes de médico em visita a uma vila brasileira, remediando cólicas menstruais de pré-adolescentes em flor com chá de papel crepom e açúcar.
Matou um homem sem motivo.
Bem, foram muitas coisas que Tristão fez nesses anos e nem todas elas são relatáveis ou louváveis.
Mas fez uma coisa de que se lembra todo santo dia quando acorda e quando se deita, quando come, bebe ou toma banho. A lembrança apenas tange o pensamento, porque o entristece, e como agregada à rotina, ele pensa nela ao fazer determinadas atividades. Quando relaxa e permite à lembrança inundar sua mente, é certo de que chora, mas não faz isso sempre.
A lembrança de que falo é o encontro com uma moça por quem Tristão se apaixonou perdida e imediatamente.
Eles tinham ambos vinte e dois anos e estavam no bar, naquela noite, por motivos parecidos. Ela tinha tédio e ele não tinha dinheiro. Pediram a mesma bebida e se notaram de longe.
Difícil explicar como tudo aconteceu, mas digo que foi rápido e recíproco. Os dois se apaixonaram um pelo outro, completamente, numa dessas noites de que nada se espera a não ser o consolo de um drink quente.
Depois de muitas doses, de muitos beijos, de muitos olhares e de muitas melhores-conversas-da-minha-vida, o destino daquele amor festivo foi a casa operária da bela, um pequeníssimo apartamento de um imenso conjunto habitacional daquela industrial cidade.
Ninguém, nem mesmo a chuva tinha mãos, pés, ventre, cotovelos, nuca tão finos quanto aquela mulher. E nunca nenhum homem foi tão desenvolto com uma dama como Tristão naquela noite, curta como um segundo, que durou até o dia alaranjado se assanhar.
“Tudo o que eu sei termina aqui”, soprava o coração apaixonado de Tristão ao mirar o belo corpo da amada adormecido na cama.
Tristão levantou-se, decidido a buscar numa venda qualquer, próxima, os itens para o melhor café da manhã da vida de sua amada. Sacodiu os bolsos e contou o seu escasso dinheiro.
Disparou a andar, passando pela imensidão de prédios de igual tamanho, igualmente pintados e dispostos em ruas iguais. Livrou-se do labirinto que desembocava numa rua diversa, cheio de lugares em que se vendiam frutas tenras e cheirosas, pão fresquinho e leite de cabra.
Encheu os braços de sacolas e com saudade do seu ninho, andou depressa pelo labirinto. Mas todos eram prédios iguais e tão iguais eram as ruas. Sem norte, andou e depois correu o quanto pôde, voltando à rua diversa diversas vezes, tentando em vão refazer o caminho. Tocou, errando, a campainha de centenas de apartamentos.
Tristão não sabia mais onde era a casa da moça.
Ele largou as sacolas, sentou na calçada e chorou uma poça de lágrimas. Chutou as sacolas, pisou nas frutas, gritou e enfim desfaleceu de fadiga.
Nunca mais encontrou sua Isolda.

sexta-feira, maio 04, 2007


Hai kai Balão


Ia dizer que fiz meus primeiros hai kais essa semana, mas na verdade eu "consegui" fazê-los. Já tinha tentado, e como! Foi um rompante de inspiração que me orgulhou muito e aconteceu no meio da aula - de uma boa aula, diga-se -, enquanto olhava pra meus coleguinhas. Ouso atribuir meu intento - aviso sem modéstia que não esperem grande coisa - ao momento mais poético da minha vida literária; tenho lido mais poesia nos ultimos dias do que feito qualquer outra coisa.
Achei que devia explicar o que é hai kai depois que um grande poeta amigo meu me disse que ainda não conhecia.

Hai kai é um estilo japonês de fazer poesia. Entre um monte de definições, passando por modas de estilo e influências de lugares e do tempo, acho que uma característica se conserva intacta: a concisão. Como os exercícios do número de toques (caracteres) de um título de jornal, é uma arte de dizer o máximo com o mínimo.
Um hai kai fotografa um instante, uma observação, encerra um pensamento.
Surgiu no Japão, século XVI, e versões brasileiras só apareceram no século XX. De lá pra cá ele viveu momentos diversos: ganhou rima, perdeu rima, ganhou título, perdeu título, movimentou polêmicas acerca de sua forma e dividiu correntes.
Uma delas sustenta a tradição oriental que define um haikai de três versos, linguagem simples, sem rima, com dezessete sílabas poéticas (cinco/sete/cinco) e com uma referência à natureza expressa por uma palavra (o kigô), que deve indicar também a estação do ano.
Outra corrente brasileira, talvez a mais famosa, não valoriza tanto a métrica nem o kigô, mas a completude e a rima – e a última não é regra. São os hai kais de poetas como Paulo Leminski, Millôr, Alice Ruiz e Helena Kolody, que inventaram de tudo o que se pode imaginar.

Aí vão os meus e, de quebra, outras coisinhas que saíram junto:


lua cheia em escorpião
causa rompante de rima
ou tenho poesia no coração?

*

olho o menino que ri
da colega que borda
com bola o pingo do i

*

Ísis, menina brejeira
a alma dá volta no mundo
o corpo aguarda na cadeira

*

Adônis dando aula
é menino de estilingue
estilhaçando janelas da alma

*

Octaviano é meu amigo
mais do que cabra do bem
enxerga além do umbigo

*

o cabelo de Marcela
inteira meu mundo
feito só de coisas belas

*

pra que tanta fala
tanto texto maldito
tanta besteira que cala
o importante a ser dito

faz-se silêncio na sala
pra escutar velho mito
um professor que é mala
e acha que fala bonito

*

mãe sábia responde
ao rebento curioso
"cachorro só não se come
porque a gente tem nojo"


E essa, feita pra minha irmã que é linda (como todas as outras e como eu também, claro, mas feita pra ela, Lígia, que além de tudo fotografa muito bem):


Eu não me canso de te olhar.
Vivo há vinte verões do seu lado, juntinho, colado
Mas parece que a cada minuto o seu rosto ganha novas linhas
E não são os vincos da vida, você ainda é novinha
São sulcos que os anjos de dedinhos finos esculpem
Quando passam de levinho no seu rosto e soltam
As linhas que só duram o tempo de eu notar e admirar
Eu não me canso mesmo de te olhar.

*