sábado, dezembro 15, 2007

"Dai-me vinho que a vida é nada"

Às cinco horas do dia seis de fevereiro de 1972, quando voltava do trabalho pelo caminho menos turbulento e mais longo que o ônibus cumpria contornando a orla da cidade, Elton, de súbito, sentiu entrar pela janela um olor insuspeito de mangas maduras (o cheiro da sua infância); ouviu Chico Buarque cantar “Tem mais samba” em um pequeno toca-fitas, vindo do fundo – ninguém ignora que as canções pescadas sem aviso, sobretudo por um rádio, causam uma emoção extra – e decidiu, pleno de sentimentalidades, que precisava mesmo naquele instante fazer alguma coisa que valesse pelo resto de seu dia.
Pensar que todo homem é uma ilha - ele corrigia a frase para si, no íntimo- era escusa para justificar o seu eterno prazer de fazer tudo desacompanhado de quem quer que fosse. Ao saltar numa praça com velhinhos e pombos colorida pela luz do fim de tarde, Elton deixou cair uma lágrima e seguiu, passos sóbrios e sorriso de canto, para a mesa de um café disposta numa larga calçada.
Pediu café, cigarros, uma empada de bacalhau e o disco de Nina Simone para tocar.
Bebeu metade, tragou pouco – a pólvora da seda do cigarro foi mais veloz que o fumante embriagado dos próprios pensamentos – e ficou decidindo, diante de um naco e um gole, se seria melhor o gosto do expresso ou da empada por último na boca. Fora isso, sua cabeça não se atarefava de quase nada: de repente não existia trabalho, relatórios, filho, mulher, mãe doente, guerra ou fome no mundo. Talvez existisse música, ou poesia. Nenhum pensamento. Uma brisa fresca que soprava secou pequenas gotas que brotaram na testa. Um pingo vindo de onde acertou a mesa; ele esmagou a pequenina com o indicador direito. Deixou o dobro do valor debaixo do pires e seguiu andando para casa.
No sobrado modesto, trinta minutos depois, achava-se sentado na poltrona da varanda calçando seus velhos chinelos. Tinha um copo baixo de uísque sem gelo em uma das mãos. Devagar, caminhou até a porta de cada cômodo e, como quem se despede, fitou a sala e a cozinha; depois passou pelo dormitório do herdeiro e se deteve finalmente à porta do próprio quarto. Demorou olhando o leito bem arrumado para ele e a mulher, como um símbolo de paz plena e felicidade. Sentou na beira da cama, alcançou a última gaveta do armário e desembalou de duas caixas e duas velhas camisas uma Ortgies calibre 8 automática. Pôs uma bala, girou o tambor, cogitou não beber mas deu o ardido gole final, mirou a fronte, um pouco à direita, e pela primeira e última vez na vida foi sorteado por uma roleta.

quinta-feira, novembro 29, 2007

A via-crucis virou circo


Belo Horizonte me causou boas impressões nas duas corridas vezes em que estive lá. Coincidentemente, as duas no fim de dois anos consecutivos.
Cheguei sexta-feira da cansativa viagem de ônibus que começou na terça. Ao todo foram dois dias viajando, apenas um ancorada na capital mineira, e o tempo inteiro trabalhando. O mote da empreitada: filmar a ida dos alunos do Circo Picolino, de Salvador, a um espetáculo do Cirque du Soleil.
A maioria nunca havia saído da cidade e me parecia muito menos excitada com este detalhe do que eu, pelo que bem me lembro, quando da minha primeira viagem pra fora da Bahia. Eu tinha nove anos e foi tudo emoção pura: o avião, o ouvido doendo, a cabine, a aterrissagem, "estou no Rio de Janeiro, estou no Rio de Janeiro", repetia em pensamento, como se estivesse pisando em outro planeta.
A inexperiência dos meninos em grandes deslocamentos trouxe alguns incômodos. Meia hora depois da partida, a bagunça no ônibus estava instalada e a criançada abria freneticamente pacotes de salgadinho, biscoito, balas, refrigerantes, emporcalhando o que seria o doce lar das mais de 24 horas seguintes. Temendo aquele furor alimentar, mas também compreendendo eles - finalmente, senhores do próprio horário de merenda -, eu previ. Quando pequena, durante viagens de automóvel eu não podia comer uma azeitona que enjoava. Não deu outra: bem ao meu lado o menino resolve chamar Raul, no banco mesmo. Em certa altura eu até convivia com o aroma, mas senti saudade dele quando um infeliz cometeu o desatino de despejar Kaiak Aventura ali, criando uma alquimia maligna. Não posso mais me aproximar de ninguém que use este perfume – vou deixando aqui como aviso!
Na ida, paramos por um pneu furado perto de cruzar a fronteira do estado e, já nas Gerais, por falência do motor (a primeira de uma série, na volta). Com cada segundo cronometrado, nossa viagem por pouco não foi em vão: chegamos às 20h, exatamente a uma hora do início do espetáculo. Deu tempo de tomar um rápido banho, despejar as bagagens nos frios quartos do enorme alojamento de alvenaria do estádio do Mineirinho e rumar, a pé (em saltos de atleta), até a branca lona itinerante que o circo do sol tradicionalmente arma para abrigar seus espetáculos.
Os cinco primeiros minutos são emoção em estado bruto. Chorei até ficar com dó de mim, mas logo parei, pra desembaçar a vista e não perder nenhum lance. Alegria, o espetáculo que vi, é visualmente impactante: trapezistas de vôo, fogo, malabarismo, bambolês e fitas, coisas lindas voando, instrumentos de sopro acompanhando uma voz de anjo (ao vivo), piruetas, mortais de quatro giros, palhaços lindos, tanta beleza que os olhos não agüentam, fraquejam, desobedecem.
O dia seguinte já era o de voltar, e tudo parecia bastante tranqüilo. Nada como passar a noite paralela ao solo e numa cama que não balança. Tinha guardado bastante fita pra gravar o que a meninada tinha pra contar e voltei bem mais interativa, desfazendo parte significativa da minha cara de má.
Nas poltronas à minha frente, sentavam uma peste de sete anos e Talita, de 14, que às vezes parecia ter a idade da vizinha. Depois de eu ter feito a de sete chorar porque tomei da mão dela um ursinho e escondi, fingindo que tinha jogado pela janela, pra ver se ela ficava quieta - e ela foi falar pra coordenadora, que a fez esquecer tudo rapidinho e voltar pro lugar -, eu ouvi Talita dar o seguinte conselho ao tal projetinho de capeta que enxugava as lágrimas a seu lado:
- Você tem que rezar antes de dormir. Teve uma hora aí que você dormiu e começou a falar umas coisas estranhas, depois começou a chorar. Tem que fazer as pazes com Deus toda noite.
Sentada a meu lado, uma menina que dormiu no mesmo quarto que eu revelou sua recente admiração, me trazendo pro assunto: “Joana também não reza antes de dormir, eu reparei ontem... não sei como ela consegue!”. Respondi didática e musical: “Uns meus, uns teus, uns ateus, uns filhos de Deus”.
Ter visto o espetáculo do Soleil foi transformador, e muito mais o foi o contexto que envolveu minha ida: o contato com aquelas crianças, até então tão esparso. Valeu cada baderna dentro do ônibus na hora do meu sono, valeu a longa espera, cada dor nos olhos quando só o que me restava fazer era ler, valeu batucar no fundão, cantar Soweto, aprender cada letra de arrocha - entrar de vez naquela dança, afinal, se a via-crucis virou circo, eu estou aqui.

quinta-feira, outubro 25, 2007

Tudo brincadeira

Não era feia, mas as comparações que torturam a irmã mais nova de uma lindíssima garota começavam a despontar. Olhava as pernas macias e as mãos de mulher da mais velha e pensava que seus joelhos pontudos e unhas sujas jamais conseguiriam.
Esperava a outra sair para entrar num mundo só dela. Sorrateira, ganhava o quarto, mexia nos adornos da penteadeira, fazia a festa. Empoava-se toda, passava batom, calçava a Anabela da irmã e vestia uma roupa tão comprida que podia fingir de cauda de vestido de noiva.
Deitava então na cama cheia de almofadas, sem nenhum bicho de pelúcia. Feito madame, esgueirava-se até a cômoda para pegar um pequenino espelho e procurar um princípio de espinha - no dia que achou, ficou tão orgulhosa...
Achou também um esmalte, mas não pincelou as unhas porque a cor era forte demais, sua mãe brigaria. Mas, delicadamente, bordou uma quase imperceptível flor na unha do mindinho.
Neste dia sua irmã estaria fora por toda a tarde e ela podia brincar no sonhado quarto até cansar.
Talvez por isso ela, vendo-se calçada naqueles sapatos de pata de elefante, com aquela poeira toda na cara e um batom que mais fazia parecer uma palhacinha, num instante cansou da brincadeira, "deixa essa coisa toda pra outro dia", deu uma piscadinha pro espelho e voltou a ser menina arteira.

segunda-feira, outubro 22, 2007

A sina de Abelardo

Abelardo se achava um azarado no amor desde que deixou uma cigana revelar a sua mala suerte. Antes não, mas depois de lida a sua mão, nada parecia no lugar. Como o dedo de alguém no seu destino, como em uma novela - "Fado Tropical" -, as mulheres de sua vida de súbito ficaram morenas e lindas como as índias mapuches dos olhos de rio doce. Todavia, ficaram repentinamente loucas, algumas com desvario agudo, histéricas, outras com apenas um horizonte de mar perdido no fundo da retina. As doidas assim, mansas - qual filhas de Helena, a cria dileta de Suzana Flag em Núpcias de Fogo - eram as que mais abatiam o palpitante coração de Abelardo, posto que a loucura só lhes acrescentava mais graça.
Já passava das oito quando Abelardo, mirando os próprios olhos no espelho do banheiro, não sem um traço de loucura - veneno herdado dos amores, diriam - decidiu ser o senhor de seu destino. Procurou no oráculo da modernidade - no Google, que tudo ensina - os segredos e significados de cada linha da palma que agora enxugava o suor de sua fronte. Después, com um canivete ou uma peixeira de baiano, consertaria na tora o destino torto com linhas certas. Procuraria a falsa bruxa da Andaluzia, la mueça del tarot, a cigana do corazón de piedra e ordenaria que lesse agouro melhor.
O rasgo que a peixeira fez, segundo a leitura semi-analfa de Abelardo, fadava à sorte de um amor tranqüilo. Com essa certeza ele foi atrás da mulher. Primeiro, pela praia de Piatã. Depois na rodoviária, e lá estava ela, de vestido laranja, sandália de couro, sorrindo um canino de ouro.
- Buenas tardes - ele disse.
- Buenas, mi cariño. Quieres que leia su mano?
- Por supuesto - respondeu em portunhol selvagem, e estendendo a mão cortada, arrematou: - Quero que releia o destino a que usted me condenou.
A cigana tomou a mão de Abelardo, deu um grito, e com cara de espanto saiu correndo, entrou na pista dos ônibus e foi atropelada antes que pudesse completar: “Su destino será muy...”.
Coitado de Abelardo. Se a cigana pudesse prever a sina de amargura que o pobre gajo atravessaria, deixava pra morrer alguns segundos mais tarde. Pior do que carregar uma maldição é a incerteza de tê-la.
Abelardo hoje vaga em busca da cigana que decifre a sorte que ele mesmo desenhou – a última que consultou tinha olhos da cor do Titicaca e cabelos tão compridos que arrastavam consigo todas as folhas, pedrinhas, poeira dos cantos das ruas, de estrelas, sonhos de amores e segredos de alcova dos corações perdidos que encontrava pelas esquecidas veredas sulamericanas.

segunda-feira, outubro 15, 2007

O fiel arrependido

O fiel de uma Igreja negociava a venda de seu carro quando um conselho do pastor fê-lo parar e prestar atenção. Dizia o religioso que vendesse sim o carro, mas que doasse o dinheiro para o templo, num jeito de comprovar a fé ao Senhor ou de pagar o dízimo vitalício antecipadamente. Garantiu que ele muito em breve seria abençoado com ainda mais riqueza. Era certeza divina.
Convencido, o fiel doou seu montante ao culto sem titubear e esperou pela graça celestial. Passou dois dias sem sair de casa, sonhando que algum telefonema avisasse de uma herança milionária ou que o gerente do banco ligasse comunicando um misterioso depósito em sua conta.
Foi à Igreja imaginando que talvez a sua ausência nos ritos estivesse atrasando a chegada da recompensa.
Mas, ao cabo de um mês, nosso fiel caiu em si num vislumbramento; desconfiou como nunca dantes das intenções do pastor quando o aconselhou e chegou à amarga questão: teria ele sido vítima de um golpe?
Sua fé, que era sólida, naquele instante desmanchou-se no ar e ele partiu furioso à procura de um advogado. Sentia-se mais ferido do que lesado, posto que foi por crença e não ganância que decidiu afinal pela investida que o fazia agora um carro menos rico.
No tribunal, o advogado foi brilhante e o júri leu a verdade nos olhos do fiel, que acompanhava com recato o seu defensor e a defesa torpe do acusado. O caso estava ganho.
A Igreja foi condenada a pagar ao fiel o valor de alguns automóveis.
Neste dia, quando chegou em casa, o fiel relembrou cada detalhe da história e se assombrou. De fato ele agora estava mais rico, como sentenciara o pastor!
Uma imensa aflição tomou seu coração. Estupefacto, o fiel reconsiderou as decisões espirituais e decidiu, no dia seguinte pela manhã, comparecer à Igreja para a gloriosa redenção.
Mas quando chegou, foi recebido com nova surpresa: era agora a Igreja que o processava por calúnia, difamação, danos morais e materias... E a audiência seria naquela mesma semana.

segunda-feira, setembro 24, 2007

A estrela do cigarro


Os saudáveis, os puristas e o núcleo familiar leitor que me perdoem mas vou fazer uma apologia politicamente incorretíssima: o assunto de hoje é o cigarro e o discreto charme de se fumar. Não que eu ande fumando, pai, mãe (juro!), nem treinando. É que acho bonito e - pra contrariar o insuportável bombardeio anti-tabaco que entope meu juízo com imagens de bebês em potes, pernas gangrenadas e ratos mortos - acho até, de certo modo, inofensivo.

É claro que pessoas não fumantes como eu sofrem com a fumaça alheia. Passei o fim de semana, por exemplo, numa casa onde respirar significa desbravar a cada vez uma enorme nuvem cinzenta. E ela é mantida e constantemente renovada pelos cinco moradores que fumam pra dormir, pra acordar, pra beber, comer e fazer cocô. O lar exala nicotina e há poeira cinzenta e filtros por todos os cantos.

Entretanto, a impressão que me dá é de que meus pulmões fraquejam mais do que os deles. Falava disso hoje com um cara que entre uma baforada e outra em mim tecia sua deprimente teoria: “Você respira as mesmas quatro mil e tantas toxinas e mais o gás carbônico da tragada alheia; isso quando não respira a outra fumaça, a que não é tragada: ela é aspirada por você sem filtro, nem nada!”. Quis me convencer de que estou pior que ele. Não sei se conseguiu.

Vamos então ao charme. Admita-se que fumar é altamente sedutor! Milhares de jovens concordam e só por isso experimentam. Além disso, fumar é cinema. Se flagrada por luz lateral, a fumaça conota um mistério, uma tristeza esparsa. James Dean de jaqueta, olhos apertados, que lindo: entre dedos a estrela do cigarro. John Travolta cruzando a boate com ele no canto da boca - quanta habilidade: mais alguém a percebeu, entre os embalos de sábado à noite? A bonequinha de luxo, sempre com sua majestosa piteira. Sempre os galãs fumam, sacando lindamente seus maços pobres ou metálicos e sempre o filtro é pardo.

Agora, a confissão: eu bem que gostaria de fumar. Eu poderia. Combina com minha personalidade, com a noite, com tudo o que eu gosto. Lugares frios e bebidas quentes. Penso no charme, mas também na utilidade. Um cigarro para mim, quando sento só para não conversar e sozinha mesma me basto. O cigarro que faz companhia, que ocupa mãos ansiosas e arruma os pensamentos. Não é assim? É então um acessório e tanto. Vou treinar, quem sabe um dia.

terça-feira, setembro 11, 2007

É chegada a Despedida

Esperei muito pelo dia de hoje. Não com a agonia de quem risca as folhinhas do calendário, mas com igual intensidade e bastante imaginação.
Venho tentando assistir Despedida em Las Vegas há muito tempo. Parei de contar as vezes em que percorri locadoras em busca desse filme. Nas pequenas, nem rastro dele. Nas duas maiores da cidade, nada. Uma delas chegou a ter, em VHS, único exemplar, mas algum desalmado alugou e perdeu, estragou ou se deu de presente.
A primeira fagulha de vontade foi disparada por meu pai. “Você nunca assistiu a esse filme?!”, perguntava ele, forjando decepção – hoje entendo o propósito, para me preocupar, como se fosse um absurdo eu não ter assistido a algum filme aos 13 anos de idade.
A segunda foi durante a fala de um rapaz numa das muitas situações inesperadas que, quem me conhece sabe, só acontecem comigo.
Eu treinava judô há pouco tempo e a euforia dessa novidade ainda me fazia acordar cedo, me alimentar direito e treinar com o gás e a paixão de uma competidora.
Em visita a uma academia amiga, conheci um judoca viajante, vindo nem lembro mais de onde, que acabava de chegar a Salvador e não conhecia ninguém. Conversando depois do treino prometi, solícita, que o levaria à noite para comer num bom lugar.
A conversa no restaurante foi inofensiva, aos navegantes que imaginaram luz de velas e um bote do malandro lutador. Mas surgiu o papo sobre o amor e, diante da crueza de minhas declarações adolescentes, de quem nunca tinha vivido isso – ainda suponho que não vivi e na época sequer tinha tido um namorado -, ele perguntou se eu havia visto Despedida em Las Vegas.
- Meu pai já me falou desse filme.
- Menina, quando você assisti-lo, não vai precisar que mais ninguém tente te dizer o que é o amor.
Uau.
Agora o tenho nas mãos... Acabei de alugar e contei alegremente minha sina a todos com quem trombei na gigantesca megastore: “Você não sabe quanto tempo procurei por isto!”. Gosto de contar minhas historinhas e acho que eles gostaram de me ouvir.

domingo, agosto 12, 2007

Voltei a cantar



Parar de escrever em blog entrou pro rol das coisas que eu não posso parar de fazer. A menos que eu queira correr o risco de não voltar mais. É como malhar, estudar ou usar creme pro rosto. Você sabe que é preciso ter disciplina, então se organiza - no caso do creme compra os potinhos, um para o dia, outro pra antes de dormir - e pensa "Que fácil é ficar bonita!".

Entusiasmada, no primeiro dia você lava o rosto, toda minúcia, aplica o creme e sente a parada fazer efeito - rejuvenescendo mesmo! Ainda mais no meu caso: aos 19 adquiri uma poção anti-idade para as de 25. A revendedora avon, por sinal minha ex sogra, disse que não faria mal. Às vezes sinto um formigamento, de vez em quando é como se a pele estivesse em chamas, mas acho que é normal.

Então uma noite, depois de misturar cerveja alemã com cachaça seleta, você chega em casa inutilizada, acabada, jogada na valeta. Passa pelo banheiro sem mirar o espelho, despeja o xixi reprimido das moçoilas casadoiras que não se corrompem por qualquer banheiro da night e segue maquinalmente pra cama.

Sim, você dorme de maquiagem - aqueles quilos de pó e tinta preta se mesclando noite adentro numa alquimia goguenta - e acorda ao meio dia com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, lembrando com pesar dos devaneios da noite e de que, "droga, já é domingo". O céu de Salvador, lindo como nunca dantes, te inspira um lamento pelo dia de praia perdido (mais um) - é a sua pele de jambo-girl também se esvaindo, amiga... outro suspiro.

Você confere a tela surrealista que o pincel de seus cílios estampou no travesseiro - era uma vez aquela fronha linda de cambraia de linho - e finalmente desbrava o banheiro, cheia de medo, coração aflito, mas pronta pra mirar a cara com coragem. Coragem, coragem.

Aquela semana de devoção e disciplina não passaram no primeiro teste prático, o da resistência física. Então adeus rotina cretina de cremes, adeus rejuvenescimento.

Com blog é menos drástico, mas igualmente devastador e de difícil recuperação. Vocês estão diantes de um esforço superior, meus caros. E quem viver verá quanto tempo durará!

domingo, junho 24, 2007

Do mérito das primeiras impressões

Toda vez acerto na mosca, mas nunca aprendo. O pré-conceito do meu olhar é imbatível e assim mesmo eu dou ouvidos a um anjo que me sopra toda vez: "calminha, nesse diagnóstico". Me basta um olho-no-olho de segundos pra capturar os segredos de alcova do objeto mirado. Eu olho os olhos de alguém e percebo do que se trata aquele ninho de intenções. Claro que isso de maneira precária, subjetiva, se viesse tudo traduzidinho, meu nome era Cigana Padilha e hoje eu estava lendo o fado tropical dos viajantes na rodoviária - o que não seria tão mal, ao menos tiraria uns trocadinhos, melhor lucro do que desta vidinha de blogueira pobre.
Elocubro, rapidamente, este pensamento depois de matutar a última decepção sofrida, fim se semana passado, São João. Culpa dessa costumeira falta de atenção à minha infalível mirada. Eu já sabia que se tratava de uma cretina, aquele ar de histeria contida não me enganava, mas o anjinho apaziguador me guardava, sentado em meu ombro, dizendo baixinho "teiquirise, Juanita". Foi na mosca: a maledita descascou injúrias gratuitas a minha doce pessoa. Aguentei firme e revidei altiva, bebi a parte de licor de jenipapo que me cabia e fui pular outra fogueira!

sexta-feira, junho 08, 2007

Pesadelo chique


Quando ouço “Monalisa”, canção de Jay Livingston e Ray Evans eternizada por Nat King Cole, lembro de minha irmã gêmea. A música fala de uma moça que é tão misteriosa quanto a do sorriso famoso. Sei que minha irmã não entende – as musas nunca entendem bem –, mas mesmo assim, de vez em quando eu canto para ela essa canção com meu inglês ruim e trocando “lisa” por Lígia – “Mona Lígia, Mona Lígia, man have named you…”.
Dias atrás, coloquei um disco de Nat para ouvir no banho, e quando tocou Monalisa, eu fiquei prestando bem atenção à letra. Nessa mesma noite eu li “O Pesadelo”, uma das sete conferências dadas por Jorge Luis Borges e transcritas em seguida para o imperdível livro “As Sete Noites”.
Não se trata de histórias de terror em si, mas de algumas acepções do tema. Em certa altura, Borges descreve o realismo que se configura nos pesadelos e o fato de que um pesadelo pode ser assustador mostrando qualquer imagem. Então, ele exemplifica com dois recorrentes pesadelos seus: no primeiro aparecem máscaras e espelhos; no segundo, um labirinto. Ambos podem parecer menos assustadores se comparados, na vigília, com uma imagem mais representativa do medo, como a do inferno. Mas se compararmos a idéia que fazemos do inferno, acordados, com a sensação real do horror que sentimos durante um pesadelo, o inferno não passa de uma simples câmara de tortura.
Tal mistura de impressões não poderia terminar de outra maneira: ainda nesta noite, eu tive um pesadelo com Nat King Cole!


Contado, meu pesadelo não terá efeito, mas naquela hora pareceu tenebroso.
Não sei onde eu estava, acho que chovia. Havia um policial que me acompanhava na investigação de um assassinato. O clímax do meu terror era eu dar com a morta ensangüentada. Eu era uma peça importante porque conseguia decifrar as entrelinhas do que dizia a letra de uma canção - Monalisa, que no sonho era de autoria de Nat King Cole -, a principal pista do crime. Descubro no fim que ele assassinara a musa inspiradora, uma mulher por quem era apaixonado.
Lembro de ler a letra no sonho e, pensando comigo, matar a charada: “Só um homem tão apaixonado seria capaz de matar a mulher!”. É uma loucura, mas no meu sonho pareceu perfeitamente verossímil...
Quem manda ler textos sobre pesadelo antes de dormir?!

Porque um cavalo? - Na verdade é uma égua. Ainda em "O Pesadelo", Borges expõe sua maravilhosa pesquisa sobre a etimologia de pesadelo em diversos idiomas. Em vários, a exemplo do latino incubus e do grego efialtes, as palavras são nomes de demônios que inspiram o pesadelo. Em espanhol, é parecida com português, pesadilla. Porém é a língua inglesa que possui o vocábulo mais sábio e mais misterioso, nightmare, que Borges, apoiado nos versos de Shakespeare, acredita descender de night mare: égua da noite. Nos versos de Shakespeare: "I met the night mare", "encontrei a égua da noite", ou ainda: "the nightmare and her nine foals", "o pesadelo e seus nove potros", em que ele vê o pesadelo como sinônimo de égua.

E porque se fosse cavalo, eu botava o desenho em azul.

sexta-feira, junho 01, 2007

Uma cilada para a analista

baseado em fatos reaiss

O homem chegou no escritório da analista quando faltavam cinco minutos para a consulta começar. Sentou-se, ofegante, e sem saber o que fazer com aquele tempo, puxou uma das revistas para o joelho e começou a folheá-la sem muito interesse. Havia apenas ele e a recepcionista na sala de espera. Lembrou-se de ter lido que pacientes de analista evitam permanecer muito tempo nos consultórios para que ninguém os flagre. Chegam quase em cima da hora e partem imediatamente depois que a sessão termina.
Sem querer, os olhares dos dois cruzavam a toda hora, e isso começou a incomodar muito o homem. Tinha alguma coisa na moça que não o agradava. Achava o seu olhar insolente. Em seis anos de análise, ele nunca sentiu vontade de trocar palavras que não fossem referentes à sua condição de paciente e à dela de recepcionista.
Mudou de lugar, expirando sonoramente como quem esvazia de uma só vez o pulmão inteiro, de modo a fazê-la perceber o seu incômodo. Sentou-se dando-lhe as costas.
De repente, ela rompe o silêncio para dar um aviso: a Dra. Rosa estava presa num engarrafamento e poderia se atrasar. Surpreendido, ele fez que entendeu, balançando a cabeça rapidamente, mas depois, recompondo-se, morreu de raiva por ela ter falado com cortesia. Não queria cortesias daquela insolente; na verdade queria ter ouvido uma grosseria e ter um motivo para destratá-la de volta, dizer-lhe algo. Fazê-la perder o emprego.
Começara a suar e a balançar as pernas. Suava e balançava as pernas quando ficava nervoso e sabia que a recepcionista conhecia esses sintomas, que anunciavam as crises de outrora. Ele podia jurar que, naquele instante, havia um sorriso de ironia na cara da moça, como se ela julgasse patética a sua agonia. Ele há muito tempo não ficava tão nervoso assim.
Estupefato, ele irrompeu com o dedo levantado e foi em direção ao balcão, gritando:
- Olhe, eu me cansei da sua cara me olhando desse jeito!
- Senhor... por favor, acalme-se! – respondeu, paralisada.
- Acalme-se uma ova. Eu percebo quando você me olha com essa sua cara sonsa. Acha que eu não sei o que você está pensando? Você deve contar a todos, às risadas, que trabalha num lugar onde um paciente maluco aparece de vez em quando para dar suas crises.
Ela já estava interfonando para a segurança quando Dra. Rosa entrou na sala. Devia ter mais de setenta, mas era jovial e tinha a aparência muito saudável; usava um tailleur de linho cinza escuro listrado de preto, os cabelos presos num coque impecável e um par de brincos de pérola. Olhou para aquele homem que berrava e transpirava como um porco que se sabe prestes ao sacrifício e ordenou-lhe, em tom baixo:
- Sr. Aderbal, queira por gentileza dirigir-se à minha sala.
Dentro dela, a doutora fez o nervoso paciente deitar-se no divã. Àquela altura, Aderbal estava com os parafusos da cabeça qual peças perdidas dentro de uma gaveta de ferramentas. De repente, não sabia onde estava; olhava para a doutora e perguntava o que fazia ali. Sequer lembrava-se de seu imbróglio com a recepcionista, minutos atrás. Parou de falar e ficou com a vista imóvel, como se percebesse algo além das janelas da sala. Então sentenciou:
- Gostaria de ir embora. A senhora poderia discar para o piloto do meu helicóptero?
- Que helicóptero, Sr. Aderbal? – respondeu ela, indiferente - acostumada -, enquanto preparava uma injeção tranqüilizante.
- O MEU helicóptero! Eu só saio daqui nele.
“Mais essa agora”, pensou a doutora. Não havia helicóptero algum. Ela tentou aplicar-lhe a injeção, mas o homem reagia mal. Delirava: "Você quer me dar um sonífero para depois roubar o meu helicóptero!". Não queria saber de outra coisa. Enquanto ele bradava pelo paradeiro do veículo, Dra. Rosa pensava no expediente, que terminara duas horas atrás.
Cansada, de súbito, a doutora resolve abandonar seus métodos e declara com o tom sereno de sempre:
- O trânsito de helicópteros hoje está um inferno. São seis da tarde e está o maior congestionamento sobre esses prédios... Ou você acha que é o único que tem helicóptero? Dessa vez você terá que ir pra casa de carro. Quer uma carona?
O pólo sobressaltado, o alter ego da personalidade em crise pôs-se imediatamente em seu lugar, desarmado de argumentos. O moço ficou tão calmo que deu até para aplicar a injeção.
Nada como uma eventual volta à velha psicologia, aquela politicamente incorreta mas que funciona sempre!

quarta-feira, maio 23, 2007


O Gorgulho

Certa vez, quando revirava tranqueiras esquecidas nalgum canto de minha casa, deparei com uma montanha de revistinhas de uma antiga coleção de minha mãe, talvez as sobras da livraria do tempo de meus pais casados. Meio ao acaso, peguei uma Chiclete com Banana, velha revista de quadrinhos e textos feita pelo Angeli e outras feras. Naquela edição eu encontrei um pequenino texto que marcou a minha vida. A revista se perdeu entre as arrumações e empréstimos que vivo fazendo, mas alguns trechinhos da história carimbaram para sempre a massa acinzentada desta que vos escreve.
A trama é simples: trata-se de um gorgulho (aquele bichinho que dá em sacos de macarrão guardados por muito tempo) cansado da monotonia vegetariana e da vidinha mansa entre sacos de cereais. Um dia, esse "penseroso coleóptero" decide expandir seu horizonte gastronômico. Ouvira falar do sangue, iguaria rara de muitas propriedades nutritivas e tentara imaginar que sabor teria. Pensava, curioso, na maravilha suculenta de um jorro rubro a lhe inundar o paladar... Hummm! Solitário e dotado de notável esperteza, o Gorgulho parte para espetar o próprio abdome com o seu bico-lança, provando do seu sanguinho e tornando-se assim um gorgulho auto-suficiente! Não é genial?
Meu achado deve estar fazendo seu terceiro aniversário. E desde que aprendi a usar a internet que venho tentando, através do oráculo Google e de outros tantos, entre combinações impossíveis e vãs palavras-chave, encontrar algo que me leve de volta àquela linda historinha, tão curtinha e tão memorável. Mas até agora nada encontrei.
Semana passada eu li o Livro de Versos de Rubem Braga (Edições Pirata do Recife), uma grande leitura. O prefácio, feito por um amigo seu cuja alcunha agora me foge, comenta uma crônica em que o escritor relata ter gravado, sem mais nem porquê, alguns versos do colombiano Aurélio Arturo: "Trabajar era bueno en el sur, cortar los árboles, hacer canoas de los troncos". Braga lembrava disso em várias ocasiões de sua vida; de repente, ao fazer algo, os versos lhe ocorriam. Versos compostos por palavras simplórias e cotidianas, mas que o tocavam profundamente. Ele arremata o texto tentando decifrar o indecifrável, que seria onde se esconde o mistério da poesia.

No prefácio, seu amigo completa com uma informação surpreendente: um dia, em viagem à Colômbia, Braga ganha de presente de amigos poetas uma antologia de Arturo. Imediatamente ele se lembra e começa a recitar aqueles versos: “Trabajar era bueno...” e os amigos, ao ouvir, recitam junto com ele, em coro. O mesmo poema de palavras simples havia marcado a vida de várias pessoas.
Claro que ao ler isto eu lembrei da história do meu gorgulhinho. Será que outro que leu também lembra dele? Como com Braga, um texto simples me marcou por algum motivo que não sei bem qual, talvez pelo humor, não sei. Pena eu não me lembrar sequer o nome do autor.
Há duas semanas, fiz um poema que fala de um tamanduá que resolve virar vegetariano, bem o oposto do meu sanguinolento coleóptero, e há um mês, mais ou menos, tentei escrever também uma continuação pro Gorgulho, ele em nova peripécia, dessa vez arranjando um amigo gondoleiro que transporta sacos de mantimentos nos porões de uma embarcação pelos canais de Veneza – finérrimo! Pensei em sacos de pistache. Será que gorgulho come pistache?

terça-feira, maio 15, 2007

De novo, no ônibus

Outra ventania de lascar e meu vestido esvoaçava em sintonia com os vácuos de arrancada de buzu, assobios e sopradas. Com apenas uma mão livre, eu tentava conter os panos num gesto que não impediu minha bunda de estampar a avenida manolo days algumas várias vezes. Torci pra ser o do meu ônibus o barulho de motor que dobrava a esquina, e era.
Entrei, sentei e senti um abafamento. As pessoas tinham medo do vento e lacravam as janelas, mas eu tava agitada com a peleja contra o vento e morta de calor. Vagou um lugar à janela e eu fui me sentar nele. Abri-a um pouquinho...
Começou a romaria, pensei, quando vi o primeiro vendedor ambulante subir pela frente (na verdade foi o segundo, tinha um vendedor de picolé que estava trocando um dinheiro com o cobrador na hora que eu passei na borboleta).
Borboleta, às vezes sai um nome lindo desse pra uma coisa chata dessa.
O sujeitinho, um garoto bochechudo e de voz boa, me fez fechar o livro e prestar atenção no que dizia.
Falava eloqüente, com apelos rebuscados, cheio de vivência; parecia um velho no corpo de um moleque, fora do tom como uma voz de menina em um barbudão. Pedia pra gente ajudar ele com algum ($) dizendo: "É da natureza humana a solidariedade".
Quase comprei, mas eram amendoins e eu queria chocolate.
O terceiro vendedor entrou no ônibus na metade do meu caminho.
Vendia drops, balas molengas, balas geladas, confeitos, jujuba e chocolate. Fiz sinal com a sobrancelha e quando ele se emparelhou à minha fila, perguntei:
- Quanto é o chokito?
- Um e trinta.
- Hum... - soltei, pensando em interromper a operação cata-moedinhas.
- Eu faço por um real.
- Tá certo, quero um.
Ora, chokito é um real. Há um tempão! Droga de inflação... Mas depois eu fiquei pensando... que pra mim não custava, que pra ele devia fazer diferença.
E segui pra faculdade, pensando nessas besteiras como pequenos crimes que eu sempre cometo.

segunda-feira, maio 07, 2007


A nova lenda de Tristão

Tristão era o último homem da civilização Momocata, mas não sabia disso até retornar à sua terra e encontrá-la devastada.
Distante, passou cinco anos bem vividos - teve que recorrer à memória para se consolar. Escreveu um livro. Construiu um barco e nele navegou o estreito de Gibraltar. Curou o melhor rum do universo, com canas frescas que cultivou e triturou no próprio quintal, quando aprendiz de um cigano do Caribe. Fez suas vezes de médico em visita a uma vila brasileira, remediando cólicas menstruais de pré-adolescentes em flor com chá de papel crepom e açúcar.
Matou um homem sem motivo.
Bem, foram muitas coisas que Tristão fez nesses anos e nem todas elas são relatáveis ou louváveis.
Mas fez uma coisa de que se lembra todo santo dia quando acorda e quando se deita, quando come, bebe ou toma banho. A lembrança apenas tange o pensamento, porque o entristece, e como agregada à rotina, ele pensa nela ao fazer determinadas atividades. Quando relaxa e permite à lembrança inundar sua mente, é certo de que chora, mas não faz isso sempre.
A lembrança de que falo é o encontro com uma moça por quem Tristão se apaixonou perdida e imediatamente.
Eles tinham ambos vinte e dois anos e estavam no bar, naquela noite, por motivos parecidos. Ela tinha tédio e ele não tinha dinheiro. Pediram a mesma bebida e se notaram de longe.
Difícil explicar como tudo aconteceu, mas digo que foi rápido e recíproco. Os dois se apaixonaram um pelo outro, completamente, numa dessas noites de que nada se espera a não ser o consolo de um drink quente.
Depois de muitas doses, de muitos beijos, de muitos olhares e de muitas melhores-conversas-da-minha-vida, o destino daquele amor festivo foi a casa operária da bela, um pequeníssimo apartamento de um imenso conjunto habitacional daquela industrial cidade.
Ninguém, nem mesmo a chuva tinha mãos, pés, ventre, cotovelos, nuca tão finos quanto aquela mulher. E nunca nenhum homem foi tão desenvolto com uma dama como Tristão naquela noite, curta como um segundo, que durou até o dia alaranjado se assanhar.
“Tudo o que eu sei termina aqui”, soprava o coração apaixonado de Tristão ao mirar o belo corpo da amada adormecido na cama.
Tristão levantou-se, decidido a buscar numa venda qualquer, próxima, os itens para o melhor café da manhã da vida de sua amada. Sacodiu os bolsos e contou o seu escasso dinheiro.
Disparou a andar, passando pela imensidão de prédios de igual tamanho, igualmente pintados e dispostos em ruas iguais. Livrou-se do labirinto que desembocava numa rua diversa, cheio de lugares em que se vendiam frutas tenras e cheirosas, pão fresquinho e leite de cabra.
Encheu os braços de sacolas e com saudade do seu ninho, andou depressa pelo labirinto. Mas todos eram prédios iguais e tão iguais eram as ruas. Sem norte, andou e depois correu o quanto pôde, voltando à rua diversa diversas vezes, tentando em vão refazer o caminho. Tocou, errando, a campainha de centenas de apartamentos.
Tristão não sabia mais onde era a casa da moça.
Ele largou as sacolas, sentou na calçada e chorou uma poça de lágrimas. Chutou as sacolas, pisou nas frutas, gritou e enfim desfaleceu de fadiga.
Nunca mais encontrou sua Isolda.

sexta-feira, maio 04, 2007


Hai kai Balão


Ia dizer que fiz meus primeiros hai kais essa semana, mas na verdade eu "consegui" fazê-los. Já tinha tentado, e como! Foi um rompante de inspiração que me orgulhou muito e aconteceu no meio da aula - de uma boa aula, diga-se -, enquanto olhava pra meus coleguinhas. Ouso atribuir meu intento - aviso sem modéstia que não esperem grande coisa - ao momento mais poético da minha vida literária; tenho lido mais poesia nos ultimos dias do que feito qualquer outra coisa.
Achei que devia explicar o que é hai kai depois que um grande poeta amigo meu me disse que ainda não conhecia.

Hai kai é um estilo japonês de fazer poesia. Entre um monte de definições, passando por modas de estilo e influências de lugares e do tempo, acho que uma característica se conserva intacta: a concisão. Como os exercícios do número de toques (caracteres) de um título de jornal, é uma arte de dizer o máximo com o mínimo.
Um hai kai fotografa um instante, uma observação, encerra um pensamento.
Surgiu no Japão, século XVI, e versões brasileiras só apareceram no século XX. De lá pra cá ele viveu momentos diversos: ganhou rima, perdeu rima, ganhou título, perdeu título, movimentou polêmicas acerca de sua forma e dividiu correntes.
Uma delas sustenta a tradição oriental que define um haikai de três versos, linguagem simples, sem rima, com dezessete sílabas poéticas (cinco/sete/cinco) e com uma referência à natureza expressa por uma palavra (o kigô), que deve indicar também a estação do ano.
Outra corrente brasileira, talvez a mais famosa, não valoriza tanto a métrica nem o kigô, mas a completude e a rima – e a última não é regra. São os hai kais de poetas como Paulo Leminski, Millôr, Alice Ruiz e Helena Kolody, que inventaram de tudo o que se pode imaginar.

Aí vão os meus e, de quebra, outras coisinhas que saíram junto:


lua cheia em escorpião
causa rompante de rima
ou tenho poesia no coração?

*

olho o menino que ri
da colega que borda
com bola o pingo do i

*

Ísis, menina brejeira
a alma dá volta no mundo
o corpo aguarda na cadeira

*

Adônis dando aula
é menino de estilingue
estilhaçando janelas da alma

*

Octaviano é meu amigo
mais do que cabra do bem
enxerga além do umbigo

*

o cabelo de Marcela
inteira meu mundo
feito só de coisas belas

*

pra que tanta fala
tanto texto maldito
tanta besteira que cala
o importante a ser dito

faz-se silêncio na sala
pra escutar velho mito
um professor que é mala
e acha que fala bonito

*

mãe sábia responde
ao rebento curioso
"cachorro só não se come
porque a gente tem nojo"


E essa, feita pra minha irmã que é linda (como todas as outras e como eu também, claro, mas feita pra ela, Lígia, que além de tudo fotografa muito bem):


Eu não me canso de te olhar.
Vivo há vinte verões do seu lado, juntinho, colado
Mas parece que a cada minuto o seu rosto ganha novas linhas
E não são os vincos da vida, você ainda é novinha
São sulcos que os anjos de dedinhos finos esculpem
Quando passam de levinho no seu rosto e soltam
As linhas que só duram o tempo de eu notar e admirar
Eu não me canso mesmo de te olhar.

*

quinta-feira, abril 26, 2007


Dia de festa,
uma grade por minha conta!




O La vie en close foi premiado com o Thinking Blogger Awards!
Quem me colocou na roda foi a Anäis, que mantém um blog encantador - registre-se aqui a primeira menção honrosa. A proposta é o blogueiro enumerar cinco blogs que o "façam pensar". É muito difícil escolher só cinco depois que se conhece tantos blogs tão bons, mas aí vão, em ordem alfabética (por falta de outra), cinco amostras da maravilha que andei descobrindo:

Alessandra Alves: A Alessandra é a minha madrinha de blog, foi através dela que descobri a boa literatura que também alimenta a rede, que comentar um texto inaugura a possibilidade de trocas imediatas de idéias, iguala escritores e leitores a usuários que interagem e multiplicam discussões e conhecimentos... isso é legal demais! Sigo ainda guiada por ela.

Caralha Quatro: Quatro amigos se juntam para expôr artes curtinhas e textos muito interessantes. Nesse eu sou viciada: acesso diarimente para checar as charges de Marcelo sobre o universo soteropolitano; as lindas fotos de Thiago e também as de Ricardo, que fala agora direto de Buenos Aires; os textos, às vezes pescados de blogs alheios, mas tão interessantes quanto os seus próprios, de Irene, e o que vier.

carapuceiro: Foi através da Fugu (próxima da lista) que conheci o Xicoooo (é a ênfaseeee). Xico Sá é um mal diagramado com alma de bom menino. Muito do que escreve é auto biográfico, bem humorado e sentimental, suas crônicas são cheias de referências apaixonadas do que viu, do que leu e das mulheres que conheceu. Tem um monte de livros publicados e uma editora, do Bispo. Recentemente atravessamos a virtualidade, quando ele aportou em Salvador e tomamos umas, ôôô encontro que urge por repeteco. Sou fã mesmo!

Fruit de la passion: Procurando "tratamento científico" para uma questão que pegava fogo aqui na redação, recorri ao oráculo google, digitando palavras-chave que me levaram a um pequenino blog onde havia, entre muitos links, o lindo nome "Fruit de la passion". Que suave! Cliquei e me deparei com um desbunde literário, a coisa mais delicada do universo, textos de uma mulher madura que, sob o singelo pseudônimo de Fugu F (sendo Fugu M seu par) escreve sobre erótica feminina e gastronomia, como ela mesma define. Confira!

Hotel Hell: O que sei sobre o Joca Reiners Terron é muito pouco, me sopra agora um amigo que ele vive de traduções e faz design. Só sei que ele escreve muito! Em seu blog, ele publica, entre textos de outros autores, poemas e textos de sua autoria - entre tantos destaco um, o relato maravilhoso da trombada com um poeta de quem é fã. Vale muitíssimo a pena conferir.

Quem quiser indicar outro blog bom que conhece ou propagar o seu próprio, eis aqui uma caixa de comentários doida pra se ver cheia de links - como se as outras caixas aqui abertas não estivessem dispostas pro mesmo!

terça-feira, abril 24, 2007


Dor de cabeça é um troço lancinante que acaba com a paixão pela vida de qualquer mortal, daí eu hoje começar a pensar na relatividade das vontades: como se relacionam com o humor da gente!
Em uma noite fértil, de insônia proveitosa, posso ficar de virote pela madrugada a inventar tabelas, revolucionar meus horários, colocar tudo no papel, planejar minhas viagens, minhas finanças, ansiar pelo dia novo que já raia com a melhor das expectativas.
Mas basta um segundo de descuido para que Morfeu, o deus grego dos sonhos, me agarre, esculpa em mim a maior cara de sono e me confira o pior desejo de cama quando não me resta nem quinze minutos mais.
Bueno, daí é só me preparar: tomar um café forte, jogar água gelada no rosto, inventar arte pra não me escorar pelos cantos e esperar pelo fim do dia, maldizendo a hora em que fiz planos nada sólidos que se desmancham com meus humores!

terça-feira, abril 17, 2007

Priminha diabinha

Era novidade porque ela estava esperando o almoço na mesa junto com os adultos. A avó encheu o seu pratinho com uma gororoba esquisita e ela não reclamou, acho que no mundinho dela ainda não existia isso de protestar pela comida que se deseja. Pegou um garfo - estavam todos conversando - e pôs-se a misturar e esmagar a comida, sem sequer provar.
Eu só assistia à cena, eu era uma intrusa. Achava lindo tudo o que aquele anteprojeto de gente fazia. Tinha três anos e falava que nem gente grande. Parecia mais uma amostra de diabinho do que um anjo, e por isso mesmo era a coisa mais bonita e gostosa do universo.
De repente, alguém da mesa berra: "Quero ver você raspar esse prato logo, menina!".
Fiquei admirando o poder ultrajovem. Melindrosa, fez que ia comer e voltou a amassar a comidinha, sem a menor intenção de pôr uma garfada na boca.
Perguntei discretamente: "Você não está com fome?" e ela disse: "Eu não gosto de bacalhau não".
Foi o suficiente pra eu sentir a Madre Teresa soprar a humanidade do mundo em meu ouvido. Recorri a psicologiazinhas baratas e aos extremos de como eu mesma fui criada, exatamente ao contrário, à base do “não quer, não come, mas só tem isso”.
Então me virei para ela:
- O que você quer comer?
- Feijão com purê.
- Só?
- Só.
- Você gosta mesmo? E vai comer tudo mesmo?
- Vou.
Peguei um pratinho e implorei: “Deixa, tia, ela gosta de feijão e purê. Põe só um pouquinho. Ela vai comer”.
Ouvi vários muxoxos: “Ela faz isso todo dia, não vai comer nadinha”.
- Oh, vai sim – respondi.
Adivinhem?
Esqueci o diabinho por dois minutos e quando olhei, lá estava ela a inventar uma pasta goguenta, furando os grãos de feijão com os dedinhos.
- Sua moleca, não disse que ia comer?
Não me respondeu.
Alguém berrou que ela fosse perturbar outra freguesia, que significava almoçar na casa da mãe, pertinho dali.

*

Meu avô começou a contar uma história de quando teve que olhar os filhos malcriados de um amigo. Chegou na casa dele na hora do almoço e assitiu à bárbarie, pai e mãe se descabelando para alimentar quatro ferinhas - uma escadinha onde o maior tinha seis anos.
Virou-se tranquilamente para o amigo e perguntou:
- Fulano, você não tinha que comprar alguma coisa no mercado?
- Sim, eu...
- Pois então vá e leve sua senhora, que eu fico aqui olhando as crianças.
O casal saiu, bastante agradecido, e meu avô esperou eles baterem a porta para começar a sua psicologia.
Tirou o cinto e surrou a mesa de madeira, que fez um barulho estrondoso. Disse apenas: “Quero quatro pratos limpos agora.”
Em menos de cinco minutos surgiu tanto apetite que as tigelinhas de metal reluziam de tão limpas.
Os pais, quando chegaram, ficaram incrédulos, maravilhados: “Puxa, que coisa fantástica, nem Deus pra alimentar essas pestinhas”.
“Naquele tempo em que não tinha essa coisa de direitos humanos era mais fácil educar as crianças”, terminou vovô, com essa pérola.

quarta-feira, abril 11, 2007



Coisas que acontecem

Ela pensava sem medo sobre o fato de caminhar sozinha e desarmada numa rua tão deserta e escura. Sofrera tentativas e assaltos à vera naquele mesmo lugar mas não carregou trauma. Se sentia uma escolada que sem drama aprendeu o que pôde - a não vacilar, a andar pelo meio da rua, a cumprimentar os porteiros dos prédios no caminho, essas coisas. No fundo se achava mesmo mulher muito valente.
Foram os pequeninos riscos da vida que ensinaram a ela uma maneira interessante de contornar o temor. Tomava máximas precauções, mas sem jamais violar sua liberdade - e seu conceito da própria liberdade era um negócio bem amplo. Cuidava, por exemplo, de checar muito bem o equipamento de bungee jump antes de saltar. Depois, tremendo na hora H, buscaria razão pra se lembrar de que havia checado e que tinha até previsto o medo. Era temer a decolagem e no segundo seguinte lembrar-se de que viu na Discovery que morrem mais pessoas atropeladas por carroças do que em quedas de avião. Coisas assim.
Então ela pensava sobre essa sua falta de medo enquanto caminhava pela rua cheia de prédios e bares fechados próximos à sua casa. Às vezes ia além: aproveitando para pensar em coisas com alguma utilidade, ensaiava por exemplo o que dizer ao ladrão que por ventura a abordasse: “Moço, eu não tenho nada não”, “Hoje não trouxe o celular, juro!”, “Tá, leva, mas deixa o chip...”.
Parou a imaginação na imagem de um revólver apontado para a sua cabeça. O que fazer aí? Fechar os olhos... e não tentar nada, nem um olhar, uma olhadela de bicho acuado? Emocionaria? Seria melhor ou pior? “Um cabra que faz coisa assim não deve se comover facilmente. Deve até se excitar diante do temor de alguém, que nojo. Mas será que eu não tenho um olhar convincente, diferente?”.
De repente, ela viu na esquina do fim da rua alguém dobrar em sua direção. Era longe, mas dava pra ver: homem, negro, magro, boné. Sentiu um pavorzinho e o lado devil da sua consciência soprava que ela tinha medo porque tratava-se de um negro, “Sua racista!”. O lado culpinha falava que ela era uma megera, degenerada e racista mesmo.
À medida que o homem se aproximava, cresciam os pensamentos. “Ele vai me assaltar”. “Ele é um homem comum, porra, trabalhador, tá de mochila”. “Vai me arrastar pro beco e me estuprar”. “Racista, se fosse um homem branco você chamava pra te acompanhar”.
O homem mudou pra o seu lado na calçada. Medo. As concienciazinhas na arquibancada, caladas. Ela lembrou de certas recomendações anti-assalto que lera: não esboce reações, nunca diminua o cerco entre você e o suspeito. “Porra, mas ele ta na minha direção!”. A culpinha, baixinho, ainda alfinetava: “Por que ele é suspeito, se nunca te fez coisa alguma?”.
Mas o temor cresceu tanto que até a culpinha fez silêncio. Ela então mudou de calçada e começou a andar muito depressa; sabia que logo se cruzariam e teria o álibi pra começar a correr.
Assim sucedido, ela desembestou qual Forrest Gump, dando saltos no lugar de passadas e sem olhar para trás. Parou na grande avenida para esperar fechar o sinal dos carros. Ao virar-se, viu que o homem a havia seguido... estava quase a alcançando. Pasma, viu que ele também corria em sua direção!
Em pânico, ela atravessou a avenida quase suicida, sem nem olhar. Sentiu vertigem, corria o mais rápido que podia. Já na calçada do seu prédio, mas ainda na mira do perseguidor, de pernas bambas, ela tropeça e cai no chão. Pensa: “Revólver na cabeça...”
O homem a alcança e oferece a mão pra ela se apoiar. “Machucou?”, pergunta e continua “Toma aqui a chave, menina. Sua mãe deixou na portaria. Sou o porteiro da noite, não lembra? Já ia levando comigo quando te vi e me lembrei, como sou tolo, me desculpe se te assustei.”
Ela passou então a cumprimentar também os porteiros do seu prédio: medida de segurança.

domingo, abril 08, 2007


Viva a pirataria!

Esse é o texto que sairá na próxima edição do jornal Oz Pirataz, pra que venho escrevendo semanalmente. Resolvi estender à blogosfera pra que vocês opinem sobre essa historinha também. Aí vai:

"O Jornal Oz Pirataz, em face da demanda desandada de e-mails e cartinhas cheirosas que vem recebendo de desesperados com o coração em desamor, resolve inaugurar um espaço esporádico para exposição das histórias mais amor-tíferas.
A pirata Joana promete desfiar uma amostra do manejo que adquiriu na arte de alcovitar. Ela convida também os demais leitores para que interfiram mandando suas histórias e opinando sobre os destinos desses desassossegados.
Comecemos com o caso de uma jovem que no momento atravessa uma peleja amorosa.
Envie, caro leitor, mensagem contendo o número de uma das alternativas - (1), (2) ou (3) - acompanhada de comentário ou não para o endereço ozpirataz@yahoo.com.br. Divulgação de resultado e resposta correta na próxima edição.
Então, foi assim:

(1). ele pediu à prima serelepe dela que os apresentasse. ele insistiu o que um garoto comum tem que insistir normalmente e conseguiu sem maiores delongas um beijo. foi um beijo normal e os dois pareciam ter gostado. passaram o resto da noite a conversar besteiras de quem não se conhece e ainda é cheio de vergonhinhas. trocaram telefones, te ligo, ele disse. ligou uma vez e como deu na caixa, não tentou mais. nem ela.

(2). ela resolvera sair após um penoso período de resguardo, durante o qual perdera a vontade de noitadas, principalmente se fosse pra conhecer um cafa como o que acabara de lhe abandonar. vestiu-se sóbria e bela e saiu com a prima serelepe. as duas atraíram dois, que começaram um papo deveras interessante. animada, ela tomou uns gorós e solicitou um beijo ao seu, que prontamente forneceu. fim de noite, pediu o telefone dele. ligaria todos os dias de duas semanas seguidas, apaixonada que estava.

(3). tanto ele insistiu que ela lhe deu um beijo. um beijo pêco e sem vontade, mas um beijo - e ele se apaixonou. daí para o fim da noite, ele foi de zero a cem numa escala de paixonite mais veloz que uma ferrari. prestes a dormir - estavam hospedados ele, ela e prima serelepe na mesma casa - ele grudou em um de seus pezinhos e anunciou que não desgrudaria até ganhar novo beijo. estava apaixonado, mas ela de saco cheio. ele dormiu chorando aos pés de sua amada. acredita até hoje que ela é o amor de sua vida."

quarta-feira, abril 04, 2007

Prosa ruim tirada de uma notícia de jornal

João Gostoso acordou, levantou e tomou banho e café sem escovar os dentes. Sentou na esteira enrolada e botou no colo o livro grosso que apóia os papéis soltos que virariam um romance peba - ele não é muito afeito a cadernos, a essas montanhas de papel grudado que apressam as gentes quando se demora demais a gastá-los. Escreveu meia página e se sentiu um gênio. Olhou na janela um dia corado e abafado, mas não se animou e repetiu desculpinhas de jovem gótico anti sol pra não sair de casa. Gostava mesmo de ficar a fazer inutilidades solitárias, as quais não vale a pena enumerar. Então atendeu o telefone que tocara quatro vezes com uma voz irritada. Era uma guapa jovem gótica e anti sol como ele. Contava que saíra noite passada pra beber e estava mal, muito mal. Aprontara algumas e alguns aprontaram com ela. Preciso te ver, amigo, disse, desligando. Foi o ânimo possível que o fez vestir-se para ir à casa dela. No caminho, escutou o canto nada gregoriano sair de uma igreja da sua rua que ocupava o lugar da saudosa Choperia Boemia. Entrou. Foi abduzido, nunca mais voltou.

domingo, abril 01, 2007


Parada no ponto

No ônibus, minha Nina Simone sopradora de assombros, incorporadora de erês cantantes, de suplícios saídos da catacumba da aldeia africana mais esquecida, me afastava da conversa de comadres ao fundo e do toque incômodo do pacote pontudo do distraído em pé ao meu lado.
Porra, não me afastava tanto assim. O pacote e agora a barriga do seu dono egoísta afundavam contra meu ombrinho descoberto. Mau dia o meu, o azar é dele: lancei minha maldição da mirada que fuzilaria um cabra no paredón - "foda-se, porque você não senta, hein? um lugar aí do lado e você se escorando em mim" - e, alvejado, ele sentou-se no ato, a dias-luz do meu mau-humor.
Ônibus é um belo laboratório, diria um professor de teatro ou um analista. Dezenas de anônimos partilhando o mesmo ar e pequenas grosserias, menores ainda gentilezas, boa noites mal ditos. Cobrador que alisa a sua mão ao apanhar o dinheiro, o que fazer mocinha? Atriz, você pode fingir gostar ou pode armar um escândalo; paciente de analista, pode sentar-se ao lado de um solitário para contar ou ouvir...
E que doçura de inconveniência se é um velhinho simpático quem puxa papo no assento ao lado? É de se fazer questão de inventar paciência. Noutro dia foi um cantor, um Ibrahim do samba que entoava só pra mim o Nelson Cavaquinho marlindo do mundo.
[E Nina, numa nostalgia impossível, a me carregar para longe o pensamento - êta vontade de saber cantar, de dar vez a essas vozes bêbedas que gritam da minha superpovoada mente e triste tristinha alma blues!]
Hora quase sempre oportuna, essa do ônibus; a minha pela religiosa longa espera. Tempo de planejar, voltar a fita das pendências de pensamento ou furtar uma graça na memória pra rir sozinho, feito maluco. Quem tem culpa da demora? Melhor é roubá-la e usar como der, amigo, como diz um poema de que só lembro a idéia: esperando é que a gente vê que, afinal, essa pobre vida não é tão curta quanto parece.
E já que a espera é grátis, como os dez por cento a mais de salgadinho-chocolate-refrigerante que, diz o pacote, é de presente, custou nada, aproveite! A espera no busú é oportunidade, uma espécie de refúgio pra abrigar pequenas pensatas e inspirações; o limbo de entre-tarefas, preciosos minutinhos que a gente deixa o dia-a-dia carregar na maior moleza.
Fome ou gula fantasiavam o capuccino com salgado ignoto de logo mais muito mais gostosos do que seriam realmente - prazer raro esse escondido na fome, quando se sabe saciá-la em breve, claro.
Desci no ponto da minha faculdade. Na cantina, quis acordar as papilas com um ardil, uma pimenta atrevida, coisa rara na minha comida - mais vale como provocação, um adorno pro dia morno de uma chica valente e de bom coração.

terça-feira, março 27, 2007


Os cabelos e suas mulheres,
Porque são eles os donos delas!



Não crio caso à toa com meus cabelos, mas vejo que muitas mulheres fazem questão de enxergar sempre o pior deles e nunca se satisfazem por completo até conseguir estragá-los irremediavelmente.
Quantos cachinhos lindos se transformaram em monótonas armações de piaçava, por culpa do desbunde de ofertas de secador&chapinha, por vaidades novelescas e modas mal interpretadas ou pela desculpa boba de que é mais prático assim...
Tive a sorte grande de ter quem elogiasse bastante os meus, correspondesse isso à realidade ou não, e assim eles sobrevivem hoje quase da melhor maneira possível, “virgens”, como especialistas chamam os cabelos nunca tratados com química de grosso calibre.
Tenho duas irmãs de cabelos lindos – a terceira tinha o mais bonito de todos, mas tantas fez que o transformou em um mutante (embora continue lindo e linda, cabelo e ela) e acho que ela nem se lembra mais de que cor era. A segunda tem as madeixas escuras, mezzo onduladas, compridíssimas, bagunçadas na medida exata; a outra tem os mais lindos caracóis que começam e terminam da mesma cor e cujos fios têm todos o mesmo comprimento.
O meu é o intermédio disso tudo, só que em versão pós enchente/furacão: não é escuro, é marrom - nem castanho, é marrom mesmo, cor de cocô (desculpa), e ainda por cima apresenta múltiplas tonalidades, matizes que se mesclam em combinações impossíveis ao longo de tortuosos fios: culpa de maltratos solares e da rebeldia sem par da dona.
Mas eu já tentei cuidar dele. Uma vez no salão me convenceram a comprar produtos e continuar o tratamento em casa, com banhos mensais de creme com queratina, ampolas de vitamina não sei o quê e reparadores de pontas, armamento pesadíssimo. Nada adiantou, aprendi que turismo é uma coisa: no salão fica tudo lindo, mas na imigração é que a gente conhece a bagaceira.
Cada moçoila sabe o cabelo que tem e não adianta tentarem interferir na nossa loucura, a menos que a dona sofra de obsessões extremadas, a exemplo de só andar de madeixas domadas ou acreditar que só pode sair de casa depois dos calores dos elétricos portáteis. Pra estes casos eu recomendo tratamento psicológico, precedido de conversa sincera com um cabeleireiro dos bons - raridade no ramo, se encontrar um, me avise.
O meu, cacheado e marrom como foi dito, tem momentos muito particulares de mudanças de textura e de nuances – essa fala é de meu pai, que acha que entende de cabelos, especialmente do meu. Tem também suas imprevisibilidades, como quando resolve ficar bonito mesmo com o cloro da piscina ou com água de mar ou de chuva.
É previsível quando eu durmo com ele molhado e acordo parecendo a vampirinha de “Entrevista com o vampiro”, minha cabeça virada num ninho de pombo reduzido à metade do comprimento. Ou ainda quando eu lavo e penteio para trás no banho, sem pentear quando termino e evitando tocá-lo no processo de secagem: ele forma cachos grandes, soltos e bonitos - tá vendo que eu sou uma mulher que sabe reconhecer quando o cabelo fica bonito?
O problema está nas situações adversas e, diga-se de passagem, são raras as adversidades para um cabelo pouco exigente como o meu. É quando falta shampoo, por exemplo, na casa do papai, e tem que se lavar os cabelos com sabonete - tom de denúncia, apelo! -, compreende? Portando um capacete indócil eu ainda tenho que ouvir: "Minha filha, você devia cuidar melhor desse seu cabelo. Você maltrata muito ele. Fica prendendo! Tem que PENTEAR, DAR UMAS ESCOVADAS NELE ANTES DE DORMIR, cuidar direitinho”. Cuidar direitinho, eu posso com isso?
Com o tempo aprendi não uma solução, mas meu jeitinho: procuro não interferir muito na natureza. A gente vai conhecendo o próprio cabelo e tem que decidir se deseja conviver com ele assim ou não. Se não gosta mesmo do seu, amiga, mude, converse com um especialista e liberte-se. Como eu acho que o meu dá pé, cuido pra que permaneça do jeito que veio ao mundo, ainda que com cachinhos errantes e com esta, digamos, escatológica cor.
Meu jeito é aparar as pontas, quase sempre eu mesma, lavar dia sim e dia não, evitar prender (difícil, difícil), pentear antes do banho (para não quebrar) e, de vez em quando, porque não, pra arrasar num special date, dar um desses besuntados banhos de goga cremosa, com direito a mini desfile em casa com aquela touca espacial e tudo!

sexta-feira, março 23, 2007


Batom Promiss

Eu e minha boca grande caminhávamos silenciosamente em direção ao ponto de ônibus numa manhã de céu parcialmente encoberto. Eu atravessei a rua depois de olhar para o lado de onde viriam carros, enquanto minha boca grande fingiu cantar uma música. (Minha boca grande gosta de fazer isso, fica se mexendo como se cantasse uma música, às vezes para fazer charme, às vezes para fazer eu me passar por doida).
Neste dia, de fato, a minha boca grande queria me fazer parecer louca. Quando eu parei na sombra do poste foi que percebi, distraída, que ela estava “prometendo” coisas. Chegou para um senhor com um pacote na mão e puxou, displicente, com beicinho e tudo, um assunto qualquer. No final ele havia me entregado o seu número de telefone com uma piscadela e minha boca grande dizia: “Prometo que te ligo”.
Eu não entendia. Na minha cabeça, um rebuliço de perguntas. Por fora eu só sentia os movimentos e ouvia as palavras que minha boca grande dizia.
O meu ônibus chegou. O cobrador perguntou se eu tinha um dinheiro menor do que a nota de dez e a boca grande mentiu que não, para depois soltar: “Prometo que amanhã eu trago trocado”.
Preocupei-me. Eu não assentia, mas ela disparava a falar. Penserosa, procurei sentar numa vaga sem ninguém ao lado. Meu silêncio analítico durou doze segundos, até que uma senhora e seu filho resolveram sentar-se no lugar ao lado do meu.
Pus a mão na boca e segurei com força, mas o menino começou: “Moça, que marca é essa?”, apontando para a cicatriz cirúrgica do meu braço esquerdo. A mãe envergonhada o repreendeu, mas não a tempo de frear minha boca grande, que respondeu baixinho: “Ferida de guerra”.
Prometia e mentia, descobri então. E de onde minha boca grande tirou isso? Continuou, desgovernada:
- Curei com cuspe e um band-aid.
A mãe me lançou um olhar esquisito e eu virei para a janela. Pensei que o melhor era me distrair. Vi, quando o ônibus parou em um ponto, uma moça vendendo água. Perguntou de lá de baixo se eu queria, e eu respondi: “Prometo a você que amanhã eu compro”.
O garoto se despediu de mim para descer junto com a mãe no ponto seguinte. Eu gritei-lhe na escada: “Um dia, prometo que conto a você a história inteira!”.
Cheguei ao trabalho prometendo a meu chefe que nunca mais me atrasaria. “Mas hoje você chegou cedo”, “Ah é, então prometo que vou ser sempre pontual assim”.
De noite, em casa, fiz café só pra mim e sentei para pensar, ordenando os eventos daquele dia estranho. Na borda da xicrinha branca eu vi estampada a marca rouge de um meio beijo. Foi então que, num estalo, me lembrei de ter usado de novo meu batom de nome Promiss!
Lavei a minha boca grande e terminei com a brincadeira.

terça-feira, março 20, 2007


Adeus, Trotsky!

Foi suicídio felino ou acidente nas alturas, a gente vê amanhã como sairá nos jornais. Tava iminente, o bichinho, mesmo novo; já tinha gastado umas cinco das sete vidas. Gato em teto de zinco quente, o bichano passeava no nosso teto possível, gostando de viver perigosamente...
Quando chegou aqui de mansinho o meu rebento, seu moço, não se aproximava muito de janelas: transmitiu o trauma silencioso nas unhadas que cravava em cada pescocinho que o atentasse. Mas no fim era íntimo delas, confidente das alturas, equilibrista preciso na bordinha do canteiro, de apartamento a outro, como nascido no circo dos gatos - que deve ser aquele de pulgas, né?
Gatos são amigos da “Indesejada das gentes” (vide Consoada, Manuel Bandeira) e por isso granjearam mais de uma chance. Não foi uma conquista grátis, mas não deixa de ter sido na maciota, posto que eles são sempre eles mesmos, senhores de si, sem fingimento algum. A Indesejada se encanta com os seres que não a temem, e concede a eles o que pouco lhes preocupa.
Era um contador de histórias, esse bichano, mas era principalmente um conquistador. Ludibriou todas as fêmeas que um dia pousaram a mão nas suas costas, miando-lhes baixinho histórias de vira-latas boêmios, gatos sem dono, sem filé e sem almofada, sem amanhã, sem jantar, manhãs de atum amargo, sem uma gatinha tão linda a acarinhar-lhes a barriga...
Umas duas vidinhas, tenho certeza, fui eu, deveras distraída, sentando em cima de um volume fofo e disperso nas cobertas. Ele tinha essa mania, não sei se por enorme preguiça ou porque achava muito gostosinho, de ficar inerte quando coberto de repente por um lençol. Permanecia até que alguém viesse perturbá-lo. Podia estar fazendo o calor dos diabos, ele não se mexia e dormia tranqüilo, tranqüilo.
Finalmente, era um lorde. O conde da corte felina de todos os tempos, inseparável de seus princípios - como havia de ser, em nome do que lhe deu o nome -, senhor das rações de prateleira melhor, dos whiskas sabor salmão com molho de anchovas, de filé ao molho madeira & funghi, frango à poivre, do leitinho gelado sempre, senão não tomava, das incontáveis recusas quando, como num agrado, surpreendiamo-no com uma tigela de refeição menor - atum fresco, pastinha ordinária de sobremesa de gato - nada, nada queria, nada aceitava: era um aristogato.

Uma vez escrevi sobre esse bichinho, então recém-chegado das ruas para minha casa. Foi em 2004 e saiu no jornal do grêmio do colégio!

Teoria da Teoria

É irritante como as situações da vida fazem a gente entrar em contradição, e aconteceu-me há poucos dias: logo eu, que nem de longe algum dia fui muito chegada a gatos, ao me deparar com um bichano desses sem-teto, imundo, verminoso e carente, imediatamente declarei a ele meu amor infinito. Fiquei pensando nisso, e consegui elaborar rapidamente alguns protótipos de minha mais nova teoria. Atenção para as proposições seguintes:
1. essas situações que eu chamei de contradições, nada são senão uma construção em cima de uma idéia negativa que adquirimos de alguém, de certas situações da vida ou mesmo de um trauma de infância – e comigo pode ter sido assim: na fazenda, minha avó sempre teve uma penca de gatinhas que, quando davam cria, um espírito “Felícia” baixava em mim e unia-se ao meu lado já perverso de criança: eu pegava os filhotinhos, ainda crus em instinto e os apertava, jogava pra cima, dava banho... não demorava até que se tornassem tão ariscos a ponto de nunca mais se aproximarem de mim;
2. é uma lei de Murphy: como a parte do pão com geléia que sempre cai pra baixo, a fila vizinha que anda sempre mais depressa, uma vez dito que não gostamos de uma coisa, imediatamente o universo inicia uma maliciosa conspiração, para deixar-nos com cara de tacho e com vontade de dar um tiro em Murphy;
3. é uma espécie de sinal: gargalhar com uma piada besta pode ser um alerta para a chegada de um resfriado; uma repentina afeição por animais detestáveis pode significar o reencontro com alguém que mora longe; rir da freira que quase deu estrelinha com um tombo que levou na escada rolante, o próximo a cair é você; cantarolar emocionado uma musiquinha brega: é melhor cuidar do fígado;
4. n.d.a.: esse gato, na verdade, é um agente especial de uma espécie de Al Kaeda do reino animal, uma nova facção terrorista que elaborou um meticuloso sistema de compreensão da linguagem humana, e que envia periodicamente voluntários suicidas (como o meu pobre Trotsky) para os lares de meninas malcriadas como eu (não se engane, pode acontecer com você também!). Quando chegar o momento marcado, minibombas atômicas instaladas nos estômagos felinos se auto ativarão matando todos num raio de 5km.
Ahá, e eu moro pertinho do colégio...
Cuidado e até a próxima!

domingo, março 18, 2007


Dos ciúmes de todas as falenas em dia de show

Eu te amo, Chico. Não olha para elas, olha só para mim. Olha como eu me arrumei toda, no meu lindo vestido de cetim azul de quase casamento, pra você me chamar de anjo blue. Não olha pra elas. Hoje eu coloquei maquiagem, estou linda, juro que pareço saída de um filme. Sofro sobre este salto, mas por você sofro elegante. Não olha para elas. Elas são lindas, eu sei, mas olha para mim. O teatro está cheio, você faz shows o ano inteiro, entendo como deve ser. Mas não olha para elas, Chico.

Olha para mim. Um olhar já basta, tenho certeza, a gente vai se entender. E podemos seguir juntos pra onde você quiser. O que queres que eu seja? Esposa, amiga, amante, caso? Serei sem me forjar e prometo ser de corpo e alma. Mas olha para mim com esses seus olhos azuis e me diga qualquer coisa. Ou não diga. Olha pra cá, Chico. Eu posso não dizer nada, posso dizer o que você quiser. Me conta a sua história. Casa comigo. Foge comigo. Me mostra, me acolhe, me canta, você é o último homem, só você me entende...

Olha pra mim, Chico. Olha como estou linda hoje, para você.

segunda-feira, março 12, 2007


Cinco vidas eu tivesse, cinco vidas gastaria

Ah, se soprasse um gênio, ou mesmo o barqueiro da encruzilhada e me dissesse: "Joana, minha filha, tens cinco vidas para escolher como gastar". Cinco vidas, mon dieu, alguns com nenhuma e eu ainda assistindo às minhas de camarote. Só em uma eu seria macho, pra experimentar e ver que falta graça. Esse "eu" nasceria nos anos 20, carioca, com olhos cor de mel de abelha jataí e com a lábia maior do mundo. O Jorginho Guinle do subúrbio e do coração. Gastaria fácil, conquistando todas, menos aquela, aquela que cria o saudosismo pro fim da vida.
A primeira mulher poderia nascer mexicana - tudo neste século - ou uma mezzo índia sul-americana muito linda, claro. Gastaria parte de minha beleza com os mui guapos e fugiria com o bando de um circo. Falaria bem pouco e soltaria raivosismos guturais quando contrariada. No circo, eu não seria assistente do mágico nem faria acrobacias. Faria números com um tigre que só respeitasse a mim e morreria dele, um dia, nova ainda, atacada com uma dentada na barriga.
Claro... eu seria atriz de cinema.
Uma do quilo de Marilyn, mas sem os deslumbramentos. Uma Rita Hayworth na trama policial da história. Seria Claudia Cardinalle quando não deu bola pra Mastroianni, ou viveria a glória e o fim à la Norma Desmond, mas desprezaria mais o meu último amante. O pneu do meu conversível furaria numa estrada da Riviera e Marlon Brando me socorreria. Seria uma figurante sonhadora e vulgar em Hollywood e faria um roteirista ruim mui mui infeliz.
Uma gran escritora, eu poderia?

"Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes
barganhando uma informação difícil. Agora
silêncio; silêncio eletrônico, produzido no
sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
[...] "

E claro, me jogaria...

Seria outra Joana, enfim. Mas uma Joana diferente, não esta corrigida, e sim a de outros rumos, do alter ego ouvido. Uma Joana parideira de cinco Marias briguentas, que nem no poema:

"Vontade de criar filho. Tudo fêmea.
Muitas fêmeas soltas de mim de avental.
Vontade de largar sapato alto
a teoria meia fina e carreira
para ser toda eu criadeira.
Meu quintal minhas crias
um varal cheio de calcinhas.
[...] "

que tal?

quinta-feira, março 08, 2007

Rapidinha de Chico Folha

Meu pai, com uns putinhos minguados no bolso, veio de Santo Amaro para morar em Salvador com 17 anos. Era um gravetinho e tinha uma cabeça gigantesca. Serviu no Exército por um ano usando uma chapeleta estranha, porque não havia capacete possível.
Chico Folha é apelido herdado, um dos meus tios já era o famoso Beto Folha e isso já rendeu uma crônica do Guido Guerra para o Tribuna da Bahia, quando era jornal. Meu pai me fez acreditar durante anos que o "folha" era porque ele lia muitos livros, pobre inocência a minha.
Ele adora contar pra gente os causos que aprontava quando chegou.
(Me conta também os causos que ele aprontava em Santo Amaro, quando menino, e eu juro que não acredito que uma pessoa possa ter sido tão capetinha. É cinematográfico, juro também que conto um desses em breve!)
Passou entre os primeiros no curso de Economia da UFBA, no final dos anos 70. Conta pra gente o que aquilo ali já foi, contaminado, é claro, pela lonjura do tempo e pelas paixões anarquistas da época. Ficou para mim algo como a Buenos Aires dos anos 50, linda, que eu vi em um filme, de jovens letrados, libertos, cheios de papéis e idéias.
Eu sei que o que ele gosta de fazer mesmo é inveja, e consegue, mata de inveja a mim e a minha geração apática, que ele chama careta, que não sente sequer a perda dos valores.
Um dos primeiros lugares que morou foi na pensão de uma tal de Helena, uma megera desalmada que trancava a geladeira a cadeado, resmungava por tudo e servia uma sopa aguada com pedaços de pão seco sem manteiga pros hóspedes famintos.
Dois deles eram irmãos e as exceções. Almofadinhas do cortiço, tratamento diferenciado. A mãe deles mandava guloseimas toda semana numa maletinha trancada, com iogurtezinhos, que iam para a geladeira da alma sebosa, chocolatinhos, biscoitinhos e os nescauzinhos da época. Papai e o resto do núcleo carcerário chupavam os dedos.
Um dia, aconteceu. O dia de fúria, como vemos todo dia acontecer com os pobres meninos nas notícias backtrunk de cidade grande - em escala menor, é claro.
Os meninos juntaram uns trocados e foram comprar algumas latas de cerveja. Subiram para o telhado forrado de dona Helena sem que ela visse. Cada um com umas três latinhas cada. Ficaram conversando e gargalhando à alta madrugada.
Cerveja dá vontade de fazer xixi, e elas tinham terminado mas... deu preguiça de descer. Chico Folha lança a genial idéia de mirar o buraquinho da lata e despejar-se ali mesmo. Uma, duas... em poucos minutos, havia ali seis ou sete latinhas quentes e cheinhas de xixi.
Na hora de voltar, um problema: se descessem com as latas, bêbados que estavam, derramariam em si mesmos. Se deixassem lá, a megera fatalmente descobriria.
Eis que surge a idéia. Estudando cada centímetro do solo com precisão, eles pegaram as latas e despejaram devagarinho por cima do forro, medindo exatamente onde daria no quarto de dona Helena, na cozinha de dona Helena, nos quartos dos filhinhos de dona Helena, e embebedaram de xixi o forro frágil dos tetos e das paredes de toda aquela bendita casa.
Fudidos já estavam, é claro.
Mas pra sabe que está fudido, fudido e meio é delicioso.
Desceram para a casa e arrombaram a geladeira. Arrombaram também a maleta dos hermanitos, fartaram-se. Na cozinha, pegaram bisnagas de catchup, mostarda e maionese e saíram pintando paredes, panelas, chão, roupas do varal. A vingança é um prato que se come quente, diria Oscar Wilde.
Meu pai escreveu na parede: "Helena você é puta"

- Pô meu pai, coitada, uma senhora, mãe de família! E o marido, e os filhos dela?
- Coitada nada, minha filha.

No dia seguinte, ai, ai, ai. Acho que foram expulsos aos pontapés, mas pelo menos deixaram uma marquinha, a resistência no cheirinho de mijo forever, pra ver se dona Helena e quem mais pudesse acordavam pro mundo.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Ensaio literário


Hoje, dentro do ônibus, quando voltava pra casa, voltei a pensar na crônica de amor que comecei a escrever dias atrás. Está parada num diálogo que não flui, como o que eu descrevo na própria trama. Nunca foi tão difícil escrever uma simples linha. Lia e apagava, tudo parecia tão artificial. Lia novamente e trocava um verbo, depois apagava o parágrafo inteiro. Apagava tudo e recomeçava, depois de já lamentar ter apagado.

Conheci recentemente o meu provável contista preferido para toda a vida, monsier Guy de Maupassant, através do soberbo Bola de Sebo e outros contos. Não é escrita, é um bailado. Ele descreve as personagens e seus conflitos com tanta leveza e ao mesmo tempo com tanta densidade que nos faz pensar que os parisienses do século XIX são nossos contemporâneos. Ele descreve Paris e revela os tipos humanos com suas sutilezas, deixando o conto tomar vida com uma linguagem simples, na medida perfeita, sem exageros, mas com tanta minúcia que parece ter estudado o mundo durante três encarnações para escrever.

Além de leitora e amante do gênero - o gênero dos preguiçosos, como ouvi muito falar sobre os chegados a contos; admito que, às vezes, livros grossos me cansam só de olhar e numa coletânea, começo sempre pelos menores, contando as páginas no índice! -, eu sou uma voraz observadora de estilos descritivos. Muito pelo encanto pela língua, mas muito mais pela vontade de escrever com naturalidade. Com base em poucas regras e no meu gosto, eu me deparo com um texto qualquer e reconheço se há nele uma sinceridade, que é uma espécie de coerência, se é que alguém me entende.

Sei que o bem escrever é perfeitamente ensinável em muitos pontos. Mas escrever ultrapassando a técnica é questão de faro, de tino. Li uma vez que escreve bem quem pensa, logo, se você pensa, escreve. Existem brilhantes poetas que não sabem escrever, mas sabem ditar, ou seja, têm em mente versos encadeados sem precisar desenhá-los...

E a crônica de amor?


Fui pensando no destino deste rebento sem pai, que empacou qual uma mula, enquanto escrevia neste instante. Decidi por uma idéia inovadora, pelo menos no La vie en close. Sei que um blog encanta seus mentores pela possibilidade de interferências externas, que inauguram uma relação muito louca de cumplicidade e de troca imediata de idéias. Borges disse que um escritor só se livra de uma obra quando a publica. Publico e me livro, pois, de um texto interminado para que vocês me ajudem a contar como termina, já que essas duas personagens não quiseram me dizer mais nada. Se disserem algo a vocês, compartilhem, por gentileza.

Sem mais delongas:


Encontro casual



Alguns meses atrás ele havia aprontado poucas e boas e ela conhecera todas as dores do amor.
Naquela tarde ela o viu e deixou que a visse em belos meneios. Olharam-se em frente ao escritório dele, num dia de sol quente. Cumprimentaram-se com surpresa:

- Você por aqui! Quanto tempo...
- Verdade, quase um ano. Como está você?
- Eu estou melhor do que nunca.

Ele achou conveniente convidá-la para se sentar. A ocasião pedia, embora a atmosfera anunciasse uma conversa pouco fluida, como quando se tenta um diálogo com naturalidade com pessoas de que não se gosta ou de quem se tem algum receio. Estavam em um boteco charmoso, decorado com madeira, caseiro mas sofisticado, onde Jorge tomava um chope todos os dias antes de voltar para casa. Ele pediu dois naquele dia.
Ela estava diferente, mais elegante, cabelos cortados e soltos. Tinha um ar renovado. Engordara um pouco, talvez dois quilos ou três, parecia ainda mais graciosa. Na cara dele o indisfarçável cansaço dos que trabalham sentados e, ao se levantar, parecem sempre carregar o próprio corpo como um saco de areia. Estava pálido, havia engordado deselegantemente e uma careca precoce já se ensaiava no topo da cabeça.
Jorge era um rapaz esperto pego de surpresa. Até sentar-se, não pôde conter nenhum indício de que não estaria tão bem. Suava e não encontrava assuntos, enquanto ela sorria, melindrosa, dando demorados goles, se abanando e olhando ao redor. Ele a entendia e observava como pairava em tudo o que ela dizia o ar de quem, numa disputa, sabe que está ganhando.
Ela o fitava sem medo, mas um olhar diferente revelou o momento de deixar os assuntos cretinos de lado. Ela começou:

- Estás namorando?
- Sério, assim, ninguém. E você?
- Estou com o Roberto.

Por muito pouco ele não tossiu com o gole que atravessava a garganta. Perguntou se era... aquele Roberto, e era o próprio. O rasgo de um ciúme adormecido correu o seu peito e ele quase se destrambelhou nas aparências.

[...]

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Sobre João Hélio Fernandes

A Rainha é um filme estrelado tão bem por Helen Mirren que, em certos momentos, faz a gente pensar que ela é a própria Elizabeth. O tempo é um recorte do episódio da morte de Lady Di, em um acidente de automóvel, em 1997. Diana, como se sabe, era separada de Charles e não mais pertencia à família real. O filme apresenta, no interior da diplomacia dos poderes, vários pequenos conflitos diante dessa situação sem precedentes - uma "ex" princesa - expostos através do tórrido temperamento inglês, que não derrama uma lágrima e enxerga humor nas tragédias.


Ex princesa, mas que tinha o título conservado em menções no mundo inteiro. A rainha se via então em uma série de problemas, a exemplo de ter que decidir entre um velório com a pompa de uma morte real, contrariando um milênio de tradição, e o enterro em uma "vala comum", causando repercussões das mais diversas. Enquanto isso, cuidava de outra questão delicada: os dois órfãos que Diana deixara. Com efeito, deixou que a avó falasse antes e fez com que os jovens passassem pelo terror da maneira mais branda possível, longe da exposição e de aborrecimentos.

Viaja com os netos sem dar maiores explicações e enfurece o povo inglês, que interpreta como descaso o que ela, numa boa intenção, pensou estar agindo da melhor maneira. A maneira como achava que uma rainha devia se portar, vestindo o luto silencioso e cumprindo o seu papel antes. Antes o dever, sobretudo para ela, que tinha a vida inteira prometida a ele.


///




Não vou me alongar na descrição do caso por dois motivos. Um deles é que seria redundante, dada a imensa exposição e o conhecimento absoluto sobre o caso. O outro é que tratar disso se tornou uma tarefa insuportável para mim, por outros dois motivos (vão me perdoando pelas ramificações): um, porque sempre me sinto muito mal. O caso é de dar vertigem, de embrulhar o estômago de um bárbaro. O exercício da alteridade, aquele que diz da capacidade de se colocar no lugar do outro, para este caso, eu não recomendo muita intensidade. Não para o menino, não para o lugar da mãe do menino. Não para quem viu nem para ninguém.

O segundo motivo é simples e franco: não suporto meus próprios pensamentos. Sinto vergonha ao me ver ávida por notícias terríveis, percorrendo os informes do horror, querendo, de certa maneira, fazer drama, "novelizar" uma coisa real e tão grotesca. Mas acontece. Quando vejo, lá estou eu à procura de mais sangue, atrás de um novo aperto no peito, de sentir os olhos marejarem sabe lá para que fim, para me provar que coisa.

Serei eu um monstro? Serei eu a única?

Surgem aos borbotões novos lances no Google e novas comunidades no orkut relacionadas à tragédia do menino. Em menos de uma semana, treze mil membros de uma comunidade virtual inteiram um fórum ativíssimo de discussões. Muitas demonstrações de solidariedade e toda a natureza de comentários - a maioria eram pessoas se articulando para efetivar sua revolta. Entre eles o seguinte tópico, a esta altura excluído: "Virou carne moída!", em que o autor anônimo declarava em caixa alta a vontade de ver a "imunda prole da classe média" sofrendo o mesmo fim. Em outro, um apelo desesperado pelas fotos do garoto esfacelado (esse mostrava a identidade).

Gosto de observar como se formam as inflexões do sentimento coletivo. Para um formato de povo, um formato de notícia: difícil decidir quem ditou primeiro. Fátima, a brilhante, é designada a cumprir os papéis de peão entrevistador nas horas em que o bicho pega, quando não pode haver falha alguma. Delicado, veja, ela é mãe também, sabe o que está fazendo. É tão brilhante que carrega uma aura imponente mesmo de cara pros pais órfãos do menino, que entrevistou para o Fantástico neste último domingo. Não é estranho?

Detesto as conclusões rasteiras que demonizam a rede Globo, atribuindo a ela a culpa das deficiências de opinião do povo. Mas a TV no Brasil representa um caso muito especial. Ela é a única verdade e a única conexão com o mundo pra milhões de pessoas. Além de tudo, é linda, emblemática, misteriosa. Um tubo louco de imagens perfeitas onde as pessoas e suas falas são belas. Então o indivíduo, o analfabeto de Brecht, tenta aproveitar, tenta viver desse jeito tão bonito. Transforma-se, vendo as novelas que dizem imitar o seu cotidiano. A televisão adestra, ele dança, copia, se balança com a maré que brinca com os seus sentimentos: "Carro pega fogo com pessoas no porta-malas..." e em seguida: "Esporte! O Corinthians enfrenta o São Paulo...". E dá-lhe bailado, dá-lhe teatralismo. Uma alfinetada nessa pobre alma pra ver se a acorda, por gentileza, para ver se existe vida antes da morte! É assim.

Generalizações são burras, mas eu luto pra não condenar a passionalidade dos trópicos quando lembro o que ocorreu em Madri, há alguns anos, em épocas de atentado terrorista. Dias depois do desastre, estava articulado um movimento nacional em protesto pelo acontecido. Gigantescas passeatas em marcha silenciosa, em luto profundo. Uma conhecida relatou a mim a vontade que teve de fotografar. Mas lá estava ela, com a câmera em riste, qual um fuzil apontado pra cabeça de quem não teme perder a vida. Pareceu estúpida demais e não teve coragem de registrar.