quarta-feira, abril 11, 2007



Coisas que acontecem

Ela pensava sem medo sobre o fato de caminhar sozinha e desarmada numa rua tão deserta e escura. Sofrera tentativas e assaltos à vera naquele mesmo lugar mas não carregou trauma. Se sentia uma escolada que sem drama aprendeu o que pôde - a não vacilar, a andar pelo meio da rua, a cumprimentar os porteiros dos prédios no caminho, essas coisas. No fundo se achava mesmo mulher muito valente.
Foram os pequeninos riscos da vida que ensinaram a ela uma maneira interessante de contornar o temor. Tomava máximas precauções, mas sem jamais violar sua liberdade - e seu conceito da própria liberdade era um negócio bem amplo. Cuidava, por exemplo, de checar muito bem o equipamento de bungee jump antes de saltar. Depois, tremendo na hora H, buscaria razão pra se lembrar de que havia checado e que tinha até previsto o medo. Era temer a decolagem e no segundo seguinte lembrar-se de que viu na Discovery que morrem mais pessoas atropeladas por carroças do que em quedas de avião. Coisas assim.
Então ela pensava sobre essa sua falta de medo enquanto caminhava pela rua cheia de prédios e bares fechados próximos à sua casa. Às vezes ia além: aproveitando para pensar em coisas com alguma utilidade, ensaiava por exemplo o que dizer ao ladrão que por ventura a abordasse: “Moço, eu não tenho nada não”, “Hoje não trouxe o celular, juro!”, “Tá, leva, mas deixa o chip...”.
Parou a imaginação na imagem de um revólver apontado para a sua cabeça. O que fazer aí? Fechar os olhos... e não tentar nada, nem um olhar, uma olhadela de bicho acuado? Emocionaria? Seria melhor ou pior? “Um cabra que faz coisa assim não deve se comover facilmente. Deve até se excitar diante do temor de alguém, que nojo. Mas será que eu não tenho um olhar convincente, diferente?”.
De repente, ela viu na esquina do fim da rua alguém dobrar em sua direção. Era longe, mas dava pra ver: homem, negro, magro, boné. Sentiu um pavorzinho e o lado devil da sua consciência soprava que ela tinha medo porque tratava-se de um negro, “Sua racista!”. O lado culpinha falava que ela era uma megera, degenerada e racista mesmo.
À medida que o homem se aproximava, cresciam os pensamentos. “Ele vai me assaltar”. “Ele é um homem comum, porra, trabalhador, tá de mochila”. “Vai me arrastar pro beco e me estuprar”. “Racista, se fosse um homem branco você chamava pra te acompanhar”.
O homem mudou pra o seu lado na calçada. Medo. As concienciazinhas na arquibancada, caladas. Ela lembrou de certas recomendações anti-assalto que lera: não esboce reações, nunca diminua o cerco entre você e o suspeito. “Porra, mas ele ta na minha direção!”. A culpinha, baixinho, ainda alfinetava: “Por que ele é suspeito, se nunca te fez coisa alguma?”.
Mas o temor cresceu tanto que até a culpinha fez silêncio. Ela então mudou de calçada e começou a andar muito depressa; sabia que logo se cruzariam e teria o álibi pra começar a correr.
Assim sucedido, ela desembestou qual Forrest Gump, dando saltos no lugar de passadas e sem olhar para trás. Parou na grande avenida para esperar fechar o sinal dos carros. Ao virar-se, viu que o homem a havia seguido... estava quase a alcançando. Pasma, viu que ele também corria em sua direção!
Em pânico, ela atravessou a avenida quase suicida, sem nem olhar. Sentiu vertigem, corria o mais rápido que podia. Já na calçada do seu prédio, mas ainda na mira do perseguidor, de pernas bambas, ela tropeça e cai no chão. Pensa: “Revólver na cabeça...”
O homem a alcança e oferece a mão pra ela se apoiar. “Machucou?”, pergunta e continua “Toma aqui a chave, menina. Sua mãe deixou na portaria. Sou o porteiro da noite, não lembra? Já ia levando comigo quando te vi e me lembrei, como sou tolo, me desculpe se te assustei.”
Ela passou então a cumprimentar também os porteiros do seu prédio: medida de segurança.

8 comentários:

A Joana disse...

Parabéns! Seus textos são muito bons!
=]
(Ah, outro dia deixei um comentário no texto que vc fala do seu gatinho!)
Beijos.

Anônimo disse...

oi mayara! eu vi seu recado, obrigada pelo elogio!! Um beijo

Anônimo disse...

acontece comigo direto, mas eu fico com medo ate de minha sombra no chao...

Anônimo disse...

como diria o profeta; é djuuuuuuuuuuuroooo

Ricardo Rayol disse...

O medo é capaz de produzir viagens alucinadas.

Anônimo disse...

o medo é humano e a gente vcria situações para enquadralo e justifica-lo. é impossivel porque nao comandamos nossas acoes diante do medo, nao tem teoria nem reza nem pensameno positivo...

Comentário disse...

uma supresa para a nossa amiga Plim

Anônimo disse...

Sabe que me vi nesta cena?
Uma vez fiz algo parecido e o cara disse prá mim: 'pensou que eu ia te assaltar foi?" fiquei sem graça e me chamei de todos estes nomes que vc disse aí .......... rssssss
beijos