terça-feira, março 24, 2009

O velho lobo do mar de férias

Foi numa viagem de veleiro que, distraído, nosso amigo levou uma saraivada de vela bem no rosto, mesmo com o tempo bom. Sangrou muito, e de volta à praia do pequeno vilarejo, a pessoa mais próxima de suturar bem o ferimento era o fazedor de redes. Ganhou uma cicatriz imensa e graduada na bochecha, a que deveu até o fim de seus dias o renegado apelido de Curinga. Triste e dolorido, ele acompanhava com pesar a progressão da enorme ruga em seu rosto, que parecia ficar mais funda a cada dia, como a mais funda das rugas. De solteirão misterioso de meia idade, ele passou a se sentir muito mais um lobo idoso que perdeu a luta pra raposa, cabisbaixo, quase humilhado. Isso, é claro, afastou as mulheres. Não tanto pelo novo rasgo nas feições, mas pela tristeza que o Curinga sentia, e emanava, de carregar uma tatuagem espúria por toda a vida.
Até que um dia chegou à vila uma forasteira de mochila, de uns quarenta anos, cabelos longos meio esbagaçados, de vivos e lindos olhos verdes. Curinga se encantou tanto que nem teve coragem de se apaixonar. Foi ela que um dia reparou no coroa tristonho que vivia errando sozinho, perto dos barcos, sem se aproximar de uma alma viva. Ela achou ele tão bonito que procurou um meio de puxar um fio de prosa. Só quando se aproximou dele, viu a face lacerada, como o sorriso forjado de um palhaço triste. Ele também viu que ela viu, e tratou logo de se virar de costas.
- Você tem uma barba bonita, cheia, ela falou.
- É, a barba nem cresce mais nesse lugar.
- Isso é um sinal de que você não é igual a ninguém, ela falou.
E a partir daí viveram juntos, pescaram juntos, se esquivaram de saraivadas de vela juntos - ela, a forasteira velha, como a raposa que ganhou a luta; ele, o misterioso curinga, o velho lobo do mar, mas de férias da velhice para sempre.

2 comentários:

Daniel Soto disse...

Muito bonito. Suas história curtas sao muito legais. Parabens pela criatividade e pela perícia na escrita.

Sunflower disse...

Nhé, toda vez que passo num blog seu eu tenho que ler TUDO.

Pôxa, acho que as cicatrizes internas são sempre as piores.

Não tem nada a ver, mas aconteceu comigo mesmo ontem, fui a um café e ia sentar no balcão com toda a normalidade, mas tropecei na bengale de um homem que estava sentado lá. Sabe o que é o pior pra mim quando vejo cicatrizes, e perdas de diversos tipos? achar a feição certa, a da naturalidade, acho que geralmente faço isso com sucesso, mas quando me pega de supetão, como tropeçar em uma bengala, sempre acho que muito pior do que ter que se apoiar em algo deve ser as pessoas te encarando porque você tem um defeito visível, ou simplesmente passar os olhos rápido demais, por fingir não ver.