quinta-feira, novembro 29, 2007

A via-crucis virou circo


Belo Horizonte me causou boas impressões nas duas corridas vezes em que estive lá. Coincidentemente, as duas no fim de dois anos consecutivos.
Cheguei sexta-feira da cansativa viagem de ônibus que começou na terça. Ao todo foram dois dias viajando, apenas um ancorada na capital mineira, e o tempo inteiro trabalhando. O mote da empreitada: filmar a ida dos alunos do Circo Picolino, de Salvador, a um espetáculo do Cirque du Soleil.
A maioria nunca havia saído da cidade e me parecia muito menos excitada com este detalhe do que eu, pelo que bem me lembro, quando da minha primeira viagem pra fora da Bahia. Eu tinha nove anos e foi tudo emoção pura: o avião, o ouvido doendo, a cabine, a aterrissagem, "estou no Rio de Janeiro, estou no Rio de Janeiro", repetia em pensamento, como se estivesse pisando em outro planeta.
A inexperiência dos meninos em grandes deslocamentos trouxe alguns incômodos. Meia hora depois da partida, a bagunça no ônibus estava instalada e a criançada abria freneticamente pacotes de salgadinho, biscoito, balas, refrigerantes, emporcalhando o que seria o doce lar das mais de 24 horas seguintes. Temendo aquele furor alimentar, mas também compreendendo eles - finalmente, senhores do próprio horário de merenda -, eu previ. Quando pequena, durante viagens de automóvel eu não podia comer uma azeitona que enjoava. Não deu outra: bem ao meu lado o menino resolve chamar Raul, no banco mesmo. Em certa altura eu até convivia com o aroma, mas senti saudade dele quando um infeliz cometeu o desatino de despejar Kaiak Aventura ali, criando uma alquimia maligna. Não posso mais me aproximar de ninguém que use este perfume – vou deixando aqui como aviso!
Na ida, paramos por um pneu furado perto de cruzar a fronteira do estado e, já nas Gerais, por falência do motor (a primeira de uma série, na volta). Com cada segundo cronometrado, nossa viagem por pouco não foi em vão: chegamos às 20h, exatamente a uma hora do início do espetáculo. Deu tempo de tomar um rápido banho, despejar as bagagens nos frios quartos do enorme alojamento de alvenaria do estádio do Mineirinho e rumar, a pé (em saltos de atleta), até a branca lona itinerante que o circo do sol tradicionalmente arma para abrigar seus espetáculos.
Os cinco primeiros minutos são emoção em estado bruto. Chorei até ficar com dó de mim, mas logo parei, pra desembaçar a vista e não perder nenhum lance. Alegria, o espetáculo que vi, é visualmente impactante: trapezistas de vôo, fogo, malabarismo, bambolês e fitas, coisas lindas voando, instrumentos de sopro acompanhando uma voz de anjo (ao vivo), piruetas, mortais de quatro giros, palhaços lindos, tanta beleza que os olhos não agüentam, fraquejam, desobedecem.
O dia seguinte já era o de voltar, e tudo parecia bastante tranqüilo. Nada como passar a noite paralela ao solo e numa cama que não balança. Tinha guardado bastante fita pra gravar o que a meninada tinha pra contar e voltei bem mais interativa, desfazendo parte significativa da minha cara de má.
Nas poltronas à minha frente, sentavam uma peste de sete anos e Talita, de 14, que às vezes parecia ter a idade da vizinha. Depois de eu ter feito a de sete chorar porque tomei da mão dela um ursinho e escondi, fingindo que tinha jogado pela janela, pra ver se ela ficava quieta - e ela foi falar pra coordenadora, que a fez esquecer tudo rapidinho e voltar pro lugar -, eu ouvi Talita dar o seguinte conselho ao tal projetinho de capeta que enxugava as lágrimas a seu lado:
- Você tem que rezar antes de dormir. Teve uma hora aí que você dormiu e começou a falar umas coisas estranhas, depois começou a chorar. Tem que fazer as pazes com Deus toda noite.
Sentada a meu lado, uma menina que dormiu no mesmo quarto que eu revelou sua recente admiração, me trazendo pro assunto: “Joana também não reza antes de dormir, eu reparei ontem... não sei como ela consegue!”. Respondi didática e musical: “Uns meus, uns teus, uns ateus, uns filhos de Deus”.
Ter visto o espetáculo do Soleil foi transformador, e muito mais o foi o contexto que envolveu minha ida: o contato com aquelas crianças, até então tão esparso. Valeu cada baderna dentro do ônibus na hora do meu sono, valeu a longa espera, cada dor nos olhos quando só o que me restava fazer era ler, valeu batucar no fundão, cantar Soweto, aprender cada letra de arrocha - entrar de vez naquela dança, afinal, se a via-crucis virou circo, eu estou aqui.

8 comentários:

Taiane Dantas disse...

Hahahahaha! Tadinha de você, Joana. Imagino o tanto de paciência que tu não teve que ter pra manter o bom humor - se é que manteve. haueheau
Mas acho que só por ter visto O Cirque du Soleil já valeu, não?
Hhahahaha! Como você consegue dormir sem rezar? =O hahaha faz teeeempos que faço isso...

Não fique muito tempo longe daqui não, a gente precisa de suas palavras! ^^


:* Beijos

Álvaro Andrade disse...

Que aventura...
Criança parece outra espécie de gente, ôs bichim atentado!

Vc trabalha com o quê? Esses vídeos são prum documentário?

Anônimo disse...

Belo batismo. Maravilha. Como diria Tiago, você caiu definitivamente no buraco de Alice!

Anônimo disse...

De fuder! invejinha. Meu sonho ver o Cirque du Soleil

Bjuuuuuuu juuuuuuuu

Tatiana disse...

Sou sua fã! Acho q já falei isso pra ocê...
E esse circo ñ dará o ar da graça pelas bandas de cá?
Droga!
Bjos!

Paulo Bono disse...

porra, acho que eu topava essa viagem.

abraço, Joana

Ivan Dmitri disse...

Quando você vai se recuperar da viagem e voltar a escrever nesta via?

Ivan Dmitri disse...

Quando você vai se recuperar da viagem e voltar a escrever nesta via?