
O Gorgulho
Certa vez, quando revirava tranqueiras esquecidas nalgum canto de minha casa, deparei com uma montanha de revistinhas de uma antiga coleção de minha mãe, talvez as sobras da livraria do tempo de meus pais casados. Meio ao acaso, peguei uma Chiclete com Banana, velha revista de quadrinhos e textos feita pelo Angeli e outras feras. Naquela edição eu encontrei um pequenino texto que marcou a minha vida. A revista se perdeu entre as arrumações e empréstimos que vivo fazendo, mas alguns trechinhos da história carimbaram para sempre a massa acinzentada desta que vos escreve.
A trama é simples: trata-se de um gorgulho (aquele bichinho que dá em sacos de macarrão guardados por muito tempo) cansado da monotonia vegetariana e da vidinha mansa entre sacos de cereais. Um dia, esse "penseroso coleóptero" decide expandir seu horizonte gastronômico. Ouvira falar do sangue, iguaria rara de muitas propriedades nutritivas e tentara imaginar que sabor teria. Pensava, curioso, na maravilha suculenta de um jorro rubro a lhe inundar o paladar... Hummm! Solitário e dotado de notável esperteza, o Gorgulho parte para espetar o próprio abdome com o seu bico-lança, provando do seu sanguinho e tornando-se assim um gorgulho auto-suficiente! Não é genial?
Meu achado deve estar fazendo seu terceiro aniversário. E desde que aprendi a usar a internet que venho tentando, através do oráculo Google e de outros tantos, entre combinações impossíveis e vãs palavras-chave, encontrar algo que me leve de volta àquela linda historinha, tão curtinha e tão memorável. Mas até agora nada encontrei.
Semana passada eu li o Livro de Versos de Rubem Braga (Edições Pirata do Recife), uma grande leitura. O prefácio, feito por um amigo seu cuja alcunha agora me foge, comenta uma crônica em que o escritor relata ter gravado, sem mais nem porquê, alguns versos do colombiano Aurélio Arturo: "Trabajar era bueno en el sur, cortar los árboles, hacer canoas de los troncos". Braga lembrava disso em várias ocasiões de sua vida; de repente, ao fazer algo, os versos lhe ocorriam. Versos compostos por palavras simplórias e cotidianas, mas que o tocavam profundamente. Ele arremata o texto tentando decifrar o indecifrável, que seria onde se esconde o mistério da poesia.
No prefácio, seu amigo completa com uma informação surpreendente: um dia, em viagem à Colômbia, Braga ganha de presente de amigos poetas uma antologia de Arturo. Imediatamente ele se lembra e começa a recitar aqueles versos: “Trabajar era bueno...” e os amigos, ao ouvir, recitam junto com ele, em coro. O mesmo poema de palavras simples havia marcado a vida de várias pessoas.
Claro que ao ler isto eu lembrei da história do meu gorgulhinho. Será que outro que leu também lembra dele? Como com Braga, um texto simples me marcou por algum motivo que não sei bem qual, talvez pelo humor, não sei. Pena eu não me lembrar sequer o nome do autor.
Há duas semanas, fiz um poema que fala de um tamanduá que resolve virar vegetariano, bem o oposto do meu sanguinolento coleóptero, e há um mês, mais ou menos, tentei escrever também uma continuação pro Gorgulho, ele em nova peripécia, dessa vez arranjando um amigo gondoleiro que transporta sacos de mantimentos nos porões de uma embarcação pelos canais de Veneza – finérrimo! Pensei em sacos de pistache. Será que gorgulho come pistache?