segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Sobre João Hélio Fernandes

A Rainha é um filme estrelado tão bem por Helen Mirren que, em certos momentos, faz a gente pensar que ela é a própria Elizabeth. O tempo é um recorte do episódio da morte de Lady Di, em um acidente de automóvel, em 1997. Diana, como se sabe, era separada de Charles e não mais pertencia à família real. O filme apresenta, no interior da diplomacia dos poderes, vários pequenos conflitos diante dessa situação sem precedentes - uma "ex" princesa - expostos através do tórrido temperamento inglês, que não derrama uma lágrima e enxerga humor nas tragédias.


Ex princesa, mas que tinha o título conservado em menções no mundo inteiro. A rainha se via então em uma série de problemas, a exemplo de ter que decidir entre um velório com a pompa de uma morte real, contrariando um milênio de tradição, e o enterro em uma "vala comum", causando repercussões das mais diversas. Enquanto isso, cuidava de outra questão delicada: os dois órfãos que Diana deixara. Com efeito, deixou que a avó falasse antes e fez com que os jovens passassem pelo terror da maneira mais branda possível, longe da exposição e de aborrecimentos.

Viaja com os netos sem dar maiores explicações e enfurece o povo inglês, que interpreta como descaso o que ela, numa boa intenção, pensou estar agindo da melhor maneira. A maneira como achava que uma rainha devia se portar, vestindo o luto silencioso e cumprindo o seu papel antes. Antes o dever, sobretudo para ela, que tinha a vida inteira prometida a ele.


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Não vou me alongar na descrição do caso por dois motivos. Um deles é que seria redundante, dada a imensa exposição e o conhecimento absoluto sobre o caso. O outro é que tratar disso se tornou uma tarefa insuportável para mim, por outros dois motivos (vão me perdoando pelas ramificações): um, porque sempre me sinto muito mal. O caso é de dar vertigem, de embrulhar o estômago de um bárbaro. O exercício da alteridade, aquele que diz da capacidade de se colocar no lugar do outro, para este caso, eu não recomendo muita intensidade. Não para o menino, não para o lugar da mãe do menino. Não para quem viu nem para ninguém.

O segundo motivo é simples e franco: não suporto meus próprios pensamentos. Sinto vergonha ao me ver ávida por notícias terríveis, percorrendo os informes do horror, querendo, de certa maneira, fazer drama, "novelizar" uma coisa real e tão grotesca. Mas acontece. Quando vejo, lá estou eu à procura de mais sangue, atrás de um novo aperto no peito, de sentir os olhos marejarem sabe lá para que fim, para me provar que coisa.

Serei eu um monstro? Serei eu a única?

Surgem aos borbotões novos lances no Google e novas comunidades no orkut relacionadas à tragédia do menino. Em menos de uma semana, treze mil membros de uma comunidade virtual inteiram um fórum ativíssimo de discussões. Muitas demonstrações de solidariedade e toda a natureza de comentários - a maioria eram pessoas se articulando para efetivar sua revolta. Entre eles o seguinte tópico, a esta altura excluído: "Virou carne moída!", em que o autor anônimo declarava em caixa alta a vontade de ver a "imunda prole da classe média" sofrendo o mesmo fim. Em outro, um apelo desesperado pelas fotos do garoto esfacelado (esse mostrava a identidade).

Gosto de observar como se formam as inflexões do sentimento coletivo. Para um formato de povo, um formato de notícia: difícil decidir quem ditou primeiro. Fátima, a brilhante, é designada a cumprir os papéis de peão entrevistador nas horas em que o bicho pega, quando não pode haver falha alguma. Delicado, veja, ela é mãe também, sabe o que está fazendo. É tão brilhante que carrega uma aura imponente mesmo de cara pros pais órfãos do menino, que entrevistou para o Fantástico neste último domingo. Não é estranho?

Detesto as conclusões rasteiras que demonizam a rede Globo, atribuindo a ela a culpa das deficiências de opinião do povo. Mas a TV no Brasil representa um caso muito especial. Ela é a única verdade e a única conexão com o mundo pra milhões de pessoas. Além de tudo, é linda, emblemática, misteriosa. Um tubo louco de imagens perfeitas onde as pessoas e suas falas são belas. Então o indivíduo, o analfabeto de Brecht, tenta aproveitar, tenta viver desse jeito tão bonito. Transforma-se, vendo as novelas que dizem imitar o seu cotidiano. A televisão adestra, ele dança, copia, se balança com a maré que brinca com os seus sentimentos: "Carro pega fogo com pessoas no porta-malas..." e em seguida: "Esporte! O Corinthians enfrenta o São Paulo...". E dá-lhe bailado, dá-lhe teatralismo. Uma alfinetada nessa pobre alma pra ver se a acorda, por gentileza, para ver se existe vida antes da morte! É assim.

Generalizações são burras, mas eu luto pra não condenar a passionalidade dos trópicos quando lembro o que ocorreu em Madri, há alguns anos, em épocas de atentado terrorista. Dias depois do desastre, estava articulado um movimento nacional em protesto pelo acontecido. Gigantescas passeatas em marcha silenciosa, em luto profundo. Uma conhecida relatou a mim a vontade que teve de fotografar. Mas lá estava ela, com a câmera em riste, qual um fuzil apontado pra cabeça de quem não teme perder a vida. Pareceu estúpida demais e não teve coragem de registrar.


9 comentários:

Anônimo disse...

pasma diante da Tv no domingo a noite vi Fatima bernardes satisfazer o apetite sangrento da sociedade brasileira, dissecando a dor dos pais do menino João...
tentei, em vão, pegar o controle remoto e desligar; mas acho que há um pouco dessa fome em cada um de nós!

Anônimo disse...

Jô, no momento, só digo, VOCÊ ESTÁ ESCREVENDO MUITO BEM. É seqüela das tantas noites que insistia em ficar lendo até tarde. E que maravilhosa seqüela. Beijos

Anônimo disse...

É a minha gatinha.
Um teclado na mão, mil idéias na cabeça. E o cinema a percorrer-lhe as artérias. E o sentimento do mundo que há de ensinar (a ela, a todos nós), o porque da grande fúria.

Anônimo disse...

nunca nada me abalou tanto como esse doloroso evento do garoto. mas precisamos lembrar disso tudo, sempre, para que não se repita mais...

Anônimo disse...

... fiz ainda pior...vi e entrevista pela segunda e terceira vez na internet...:-(

Anônimo disse...

Oi, Jô. Nada a ver com o conteúdo do post, é apenas pra elogiar o novo visual do teu blog. No mínimo, elegante. Muito bacana e bonito. Feliz carnaval pra ti, pra Bahia, pra todo mundo.

Anônimo disse...

Vou ter que discordar do rapaz aí de cima...MUITO MAIS BONITO VERDEEE!! ;)

Fugu disse...

Joana, mesmo falando de sofrimento e dor, é fascinante acompanhar o movimento da sua escrita. Uma surpresa, você!

Anônimo disse...

Joana, é a 1a vez que visito seu blog. O apetite da humanidade pela desgraça, acredito eu, vem em parte da solidariedade que nos humaniza e parte por um comprazimento na desgraça que nos assola. Não vi a entrevista, mas chorei desenfreadamente ao ver o depoimento dos pais do menino no final da novela das 8.
Acredito que a melhor forma de contribuirmos é enviando sempre que lembrarmos, uma vibração de muito amor pra essa família e pra esses criminosos, pra que possam ter a dimensão do que fizeram e um dia, poderem se arrepender e se tornar pessoas melhores.
De resto, é nos desapegarmos dos detalhes sórdidos, que são veneno pra nossa alma.
Tudo de bom pra vc e parabéns pelos seus textos!