sexta-feira, agosto 19, 2011

só love

Deitados de barriga pra cima, sobre a canga branca estendida na areia da praia, lado a lado eles conversavam - a mão dela de vez em quando na cabeça dele, o dedo dele querendo brincar com o umbigo dela.
Perdiam a espetacular vista de gaivotas e barcos na água com o pôr do sol ao fundo. É o amor, que faz eu pensar em você e esquecer dos juros, de Gaza, do furacão com nome de mulher, do livro de Stendhal, do fim da novela...

orora

saudade do tempo de outrora, aurora, em que a gente não tinha medo, casa própria, os sete pecados industriais, nada, nada.

aurora, tem dia que dá vontade de voltar pro quentinho daquela barriga e ficar nadando, ganhando carinho de graça. pensar na vida como o sonho de um gênio, o dono de tudo, o futuro, o novo milênio.

foi outrora, aurora, que a gente ouviu aquela canção. os pés em qualquer lugar menos no chão.

a gente tem andado muito parado, escuta essa que eu tô te dizendo. vamos sair mais, vamos sair pra beber, fechar bares, aurora, lembra?

eu lembro de tudo mesmo, aurora, lembro de tudo agora, lembro como se fosse ontem, você também?

contos de memórias

i. tenho a impressão de que a tarde foi de um novembro, mas podia ser de maio. em mês de maio a tarde de vez em quando se desmantela daquele jeito. tenho ela inteira na lembrança como um fotograma ou uma foto de lambe-lambe sozinha perdida no resvão de uma casa grande qualquer. é o cinema em que eu perdi as falas, perdi a trilha e as datas. filme mudo de um dia em que eu fui o tolo que carlitos jamais foi.

vou dizer como foi, o mar se estendia liso como um chão encerado. a tarde ardia cor de rosa, você ali sentada na cadeira de palhinha, sorrindo, acho que era pra mim. tomara que naquele segundo eu tenha te dito o quanto te amava, tomara que por isso você tenha me jogado outro daquele sorriso, eu saberia que era amor também.

de repente você se levanta, me dispara um olhar molhado e triste e parte correndo, derrubando a cadeira na areia e deixando pra trás o lenço e o chapéu que eu te dei.

agora eu estou nu, sentado no pisador de uma cela suja, as mãos no saco, rodando ad infinitum essa película espúria na minha cabeça. acho que estou ficando louco, aliás eu já fiquei, esmurrei a parede de pedra e concreto, minhas mãos parecem as do estivador do inferno. eu quase matei um homem, eu fui ter com deus, eu perguntei ao mundo o que eu te disse naquele dia, o que aconteceu, porque eu não lembro. o mundo não me ouve, deus não responde, minha mente não entende

pelo amor de deus, vê se nunca me esquece

ii. Achei no fundo da última gaveta de um criado mudo um anelzinho amarelo, meio amassado. Custou pra eu lembrar, mas a lembrança, quando veio, veio de vez: sete anos, com um vestido de colher alface e pernas de palito eu ia até a venda de meu pai, que vendia de tudo, tudo mesmo, e pedia um pedaço de níquel. era tão normal que meu pai nem perguntava pra quê; acho que cada criança ali deve ter feito esse pedido a ele umas duas vezes, pelo menos. munida do pequenino metal, pra mim mais precioso que qualquer pepita, eu ia até a loja de seu joão e pedia pra ele me fazer um anelzinho. seu joão tinha um maçarico e ia lá pro fundo fazer a peça, eu ficava de fora escutando um barulhinho fino, ardendo de curiosidade. quando ele voltava com a encomenda – nunca se soube que milagre o fazia acertar o tamanho certinho dos dedinhos sem medir – eu quase arrancava minha jóia da mão dele e saía correndo e gritando.

uma vez eu pedi a seu joão pra fazer um um pouquinho maior, que era pra quando eu crescer usar o anel pra sempre. o pra sempre durou um banho no riacho que afundou o anel no sem-fim enlameado.

iii. Dizem que beber faz a gente esquecer as coisas, mas em mim o efeito sempre foi o contrário. A cada gole me sobe à tona uma lembrança esquecida no fundo do fundo dessa memória imprecisa, mas tenaz. Neste mesmo instante, aqui no balcão, tomando um chope pra distrair, uma morena me olhou nos olhos de um jeito que não me olhavam há mais de vinte anos.

eu lembro quem foi, a que horas, que dia e com que roupa a de duas décadas atrás estava vestida. O diálogo que sucedeu a alvejada fuminante foi mais ou menos assim:

ela: o que você tanto olha?

eu: nunca tinha reparado nos seus olhos, eles têm uma cor de... amêndoa.

ela: castanha.

eu: castanho?

ela: Castanha. É castanha queimada.

eu: Pode ser. Não, não desvia. Olha pra mim de novo.

ela: cuidado: o último que me olhou assim não me deu sossego.

Rimos, nos abraçamos e aquelas amêndoas, que seja, castanhas, carambolas, me perseguiram por tantos chopes e sonhos quanto minha cabeça pôde agüentar.

quarta-feira, agosto 03, 2011

Dia de cão

Lugares que conhecem mais o frio que o quente, erram a mão quando chega o verão. Por exemplo Madrid, senhoras e senhores, freguesia onde Nossa Senhora dos ar condicionados não opera. Na fila pra comprar um bilhete sem volta pra outra cidade, eu suava. A fila ia lenta como um escritório de governo. Naquele silêncio, na cinza das horas, lembrei de uma frase que eu li há muito tempo e que nunca confortou ninguém: "o bom das filas é a gente sentir que a vida não é tão curta quanto parece".

Saí. Pensei em sorvete de cupuaçu, delírio de náufrago. Os dedos do pé escorregavam de suor sobre as havaianas. Cruzei a praça, passei ao lado da fonte; dentro dela, um perro callejero sortudo se refrescava. Desisti do sorvete, meu sonho agora era uma pedra de gelo pra eu esfregar na nuca. Até o vestido, tão levinho, era desconfortável. Qualquer roupa é roupa demais onde o termômetro passa dos 30 e a brisa do mar não alcança.

Vi outro cachorro chupando gelo. Que delicadeza de quem deu. Devia ser o dia dos cachorros, pensei com o sol marinando as idéias. Fui pela sombra até perto de casa, à costa dos bares, pra aproveitar a sombra. Parei quando encontrei uma amiga que me convidou para sentar. Sentei naquele barzinho lindo, do lado de fora pra fumarmos um cigarro e meio, e sobre minha cabeça, o borrifador de água que refrescava os clientes. Devia ser meu dia também.