domingo, janeiro 27, 2008

Só mais uma segunda-feira

Do lado de cá da rua, podia-se ver o letreiro de neon com o nome Karol's ainda aceso, piscando. Mesmo com o dia já iluminando a noite fria. Do lado de lá alguém viria que Antenor (lia-se bem grande em sua camisa), sentado na calçada e com os cotovelos sobre os joelhos parecia esperar alguma coisa ou alguém sair de dentro da porta vermelha.
Ele não torceu o nariz nem ensaiou mudar de lugar quando um caminhão de lixo parou na esquina do Karol's. Um cachorro quis fuçar um saco aberto e um dos recolhedores espantou-o com um chute, mas o bicho não protestou - a complacência dos vira-latas. Os rapazes que carregaram o lixo fizeram seu trabalho sem verdadeiramente perceber que havia uma pessoa ali. Se viram, confundiram aquele corpo inerte com o resto da paisagem e seguiram adiante.
Antenor bebia os goles finais de uma cerveja morna, a sexta desde que chegara ali. Com as outras cinco garrafas ele já havia feito um truque, a brincadeira musical em que se bate a chave nos corpos das garrafas quando cada uma contém uma quantidade diferente de líquido. Um tempo depois ele deixou duas delas rolarem pelo asfalto e sentiu uma migalha de vidro acertar sua bochecha quando um ônibus passou pela rua, mas não chegou a se cortar.
Antenor tinha relógio, mas não o olhava. Não era pressa o que ele tinha.
Da sacada da minha janela, vendo aquele homem assim, eu apostei todas as minhas fichas que uma mulher sairia por aquela porta rubra e por algum motivo o faria levantar-se.
De fato, não poderia-se dizer que este observador que do quinto andar vos fala teria tanto azar no jogo assim: afinal foi uma mulher - dona Maria, a dona da cafeteria - quem abriu a porta para que o garçom meio bêbado, meio sonolento e inexperiente se levantasse para começar o novo expediente.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Homem e mulher no telefone às duas da madrugada


“Você sabe, a minha vida é uma caravela cheia de tentáculos”, eu disse.
“Não sei o que fazer com tanta saudade”, ela disse.
“Põe numa garrafa e joga ela no mar. Quem sabe vai parar na Antártida”, eu disse.
“Você não me leva a sério”, ela disse.
“Eu te levo pra andar por aí”, eu disse.
“Vamos andar por aí”, ela disse.
“E ir até o mar em silêncio tomando uma cerveja. E molhar os pés na água gelada”, eu disse.
“Quem sabe chega uma garrafa cheia de saudade”, ela disse.
“De um esquimó que perdeu a moça ou a touca”, eu disse.
“Eu derramaria a garrafa em sua cabeça e te sopraria um feitiço”, ela disse.
“Sua macumbeira”, eu disse.
“Seu cretino amado”, ela disse.
“Está tocando aquela música”, eu disse.
“Estou escutando daqui”, ela disse.
“Fiquei nervoso, fala alguma coisa”, eu disse.
“Você me deve um saco de caramelos”, ela disse.
“Você me deve um strip-tease”, eu disse.
“O que você vai fazer agora?”, ela disse.
“Vou me jogar da janela e já volto”, eu disse.
“Tomar estricnina pra esquecer essa menina”, ela disse.
“E um calmante, um excitante, e um bocado de gim”, eu disse.
“Se você estivesse aqui seria muito bueno”, ela disse.
“Eu vou te visitar daqui a pouco num sonho bom”, eu disse.
“Por favor, não venha num cavalo branco”, ela disse.
“Estou mais pra pangaré. Eu o pangaré e você no meu lombo”, eu disse.
“Vou sonhar que sou o Atacama e você um camioñito de perdidas arenas. Nem tenho pena do tanto de viagens que você vai ter que fazer”, ela disse.
“Nunca sonhei com você”, eu disse.
“Deus te protege de um infarto noturno e fulminante”, ela disse.
“Chata, mas engraçadinha”, eu disse.
“Eu tenho os meus momentos”, ela disse.
“E nós só temos mais uns cinco minutos de prosa”, eu disse.
“E aí game over, como o combinado”, ela disse.
“Combinado, registrado e carimbado num contrato selado com amor”, eu disse.
“Quem diria que essa história ia acabar com as unidades de um cartão telefônico”, ela disse.
“Quem diria tanta coisa, meu amor”, eu disse.
“Tomara que um dia a gente possa ser amigos”, ela disse.
“Tomara que um dia a gente possa estragar essa amizade”, eu disse.
“Sua vida é uma caravela e a minha é uma água-viva. Eu sou uma sardinha e você é um peixe-banana”, ela disse.
“Ela me detesta. Um beijo na boca”, eu disse, e ela disse “Um beijo na testa”.