quinta-feira, outubro 25, 2007

Tudo brincadeira

Não era feia, mas as comparações que torturam a irmã mais nova de uma lindíssima garota começavam a despontar. Olhava as pernas macias e as mãos de mulher da mais velha e pensava que seus joelhos pontudos e unhas sujas jamais conseguiriam.
Esperava a outra sair para entrar num mundo só dela. Sorrateira, ganhava o quarto, mexia nos adornos da penteadeira, fazia a festa. Empoava-se toda, passava batom, calçava a Anabela da irmã e vestia uma roupa tão comprida que podia fingir de cauda de vestido de noiva.
Deitava então na cama cheia de almofadas, sem nenhum bicho de pelúcia. Feito madame, esgueirava-se até a cômoda para pegar um pequenino espelho e procurar um princípio de espinha - no dia que achou, ficou tão orgulhosa...
Achou também um esmalte, mas não pincelou as unhas porque a cor era forte demais, sua mãe brigaria. Mas, delicadamente, bordou uma quase imperceptível flor na unha do mindinho.
Neste dia sua irmã estaria fora por toda a tarde e ela podia brincar no sonhado quarto até cansar.
Talvez por isso ela, vendo-se calçada naqueles sapatos de pata de elefante, com aquela poeira toda na cara e um batom que mais fazia parecer uma palhacinha, num instante cansou da brincadeira, "deixa essa coisa toda pra outro dia", deu uma piscadinha pro espelho e voltou a ser menina arteira.

segunda-feira, outubro 22, 2007

A sina de Abelardo

Abelardo se achava um azarado no amor desde que deixou uma cigana revelar a sua mala suerte. Antes não, mas depois de lida a sua mão, nada parecia no lugar. Como o dedo de alguém no seu destino, como em uma novela - "Fado Tropical" -, as mulheres de sua vida de súbito ficaram morenas e lindas como as índias mapuches dos olhos de rio doce. Todavia, ficaram repentinamente loucas, algumas com desvario agudo, histéricas, outras com apenas um horizonte de mar perdido no fundo da retina. As doidas assim, mansas - qual filhas de Helena, a cria dileta de Suzana Flag em Núpcias de Fogo - eram as que mais abatiam o palpitante coração de Abelardo, posto que a loucura só lhes acrescentava mais graça.
Já passava das oito quando Abelardo, mirando os próprios olhos no espelho do banheiro, não sem um traço de loucura - veneno herdado dos amores, diriam - decidiu ser o senhor de seu destino. Procurou no oráculo da modernidade - no Google, que tudo ensina - os segredos e significados de cada linha da palma que agora enxugava o suor de sua fronte. Después, com um canivete ou uma peixeira de baiano, consertaria na tora o destino torto com linhas certas. Procuraria a falsa bruxa da Andaluzia, la mueça del tarot, a cigana do corazón de piedra e ordenaria que lesse agouro melhor.
O rasgo que a peixeira fez, segundo a leitura semi-analfa de Abelardo, fadava à sorte de um amor tranqüilo. Com essa certeza ele foi atrás da mulher. Primeiro, pela praia de Piatã. Depois na rodoviária, e lá estava ela, de vestido laranja, sandália de couro, sorrindo um canino de ouro.
- Buenas tardes - ele disse.
- Buenas, mi cariño. Quieres que leia su mano?
- Por supuesto - respondeu em portunhol selvagem, e estendendo a mão cortada, arrematou: - Quero que releia o destino a que usted me condenou.
A cigana tomou a mão de Abelardo, deu um grito, e com cara de espanto saiu correndo, entrou na pista dos ônibus e foi atropelada antes que pudesse completar: “Su destino será muy...”.
Coitado de Abelardo. Se a cigana pudesse prever a sina de amargura que o pobre gajo atravessaria, deixava pra morrer alguns segundos mais tarde. Pior do que carregar uma maldição é a incerteza de tê-la.
Abelardo hoje vaga em busca da cigana que decifre a sorte que ele mesmo desenhou – a última que consultou tinha olhos da cor do Titicaca e cabelos tão compridos que arrastavam consigo todas as folhas, pedrinhas, poeira dos cantos das ruas, de estrelas, sonhos de amores e segredos de alcova dos corações perdidos que encontrava pelas esquecidas veredas sulamericanas.

segunda-feira, outubro 15, 2007

O fiel arrependido

O fiel de uma Igreja negociava a venda de seu carro quando um conselho do pastor fê-lo parar e prestar atenção. Dizia o religioso que vendesse sim o carro, mas que doasse o dinheiro para o templo, num jeito de comprovar a fé ao Senhor ou de pagar o dízimo vitalício antecipadamente. Garantiu que ele muito em breve seria abençoado com ainda mais riqueza. Era certeza divina.
Convencido, o fiel doou seu montante ao culto sem titubear e esperou pela graça celestial. Passou dois dias sem sair de casa, sonhando que algum telefonema avisasse de uma herança milionária ou que o gerente do banco ligasse comunicando um misterioso depósito em sua conta.
Foi à Igreja imaginando que talvez a sua ausência nos ritos estivesse atrasando a chegada da recompensa.
Mas, ao cabo de um mês, nosso fiel caiu em si num vislumbramento; desconfiou como nunca dantes das intenções do pastor quando o aconselhou e chegou à amarga questão: teria ele sido vítima de um golpe?
Sua fé, que era sólida, naquele instante desmanchou-se no ar e ele partiu furioso à procura de um advogado. Sentia-se mais ferido do que lesado, posto que foi por crença e não ganância que decidiu afinal pela investida que o fazia agora um carro menos rico.
No tribunal, o advogado foi brilhante e o júri leu a verdade nos olhos do fiel, que acompanhava com recato o seu defensor e a defesa torpe do acusado. O caso estava ganho.
A Igreja foi condenada a pagar ao fiel o valor de alguns automóveis.
Neste dia, quando chegou em casa, o fiel relembrou cada detalhe da história e se assombrou. De fato ele agora estava mais rico, como sentenciara o pastor!
Uma imensa aflição tomou seu coração. Estupefacto, o fiel reconsiderou as decisões espirituais e decidiu, no dia seguinte pela manhã, comparecer à Igreja para a gloriosa redenção.
Mas quando chegou, foi recebido com nova surpresa: era agora a Igreja que o processava por calúnia, difamação, danos morais e materias... E a audiência seria naquela mesma semana.