segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Ensaio literário


Hoje, dentro do ônibus, quando voltava pra casa, voltei a pensar na crônica de amor que comecei a escrever dias atrás. Está parada num diálogo que não flui, como o que eu descrevo na própria trama. Nunca foi tão difícil escrever uma simples linha. Lia e apagava, tudo parecia tão artificial. Lia novamente e trocava um verbo, depois apagava o parágrafo inteiro. Apagava tudo e recomeçava, depois de já lamentar ter apagado.

Conheci recentemente o meu provável contista preferido para toda a vida, monsier Guy de Maupassant, através do soberbo Bola de Sebo e outros contos. Não é escrita, é um bailado. Ele descreve as personagens e seus conflitos com tanta leveza e ao mesmo tempo com tanta densidade que nos faz pensar que os parisienses do século XIX são nossos contemporâneos. Ele descreve Paris e revela os tipos humanos com suas sutilezas, deixando o conto tomar vida com uma linguagem simples, na medida perfeita, sem exageros, mas com tanta minúcia que parece ter estudado o mundo durante três encarnações para escrever.

Além de leitora e amante do gênero - o gênero dos preguiçosos, como ouvi muito falar sobre os chegados a contos; admito que, às vezes, livros grossos me cansam só de olhar e numa coletânea, começo sempre pelos menores, contando as páginas no índice! -, eu sou uma voraz observadora de estilos descritivos. Muito pelo encanto pela língua, mas muito mais pela vontade de escrever com naturalidade. Com base em poucas regras e no meu gosto, eu me deparo com um texto qualquer e reconheço se há nele uma sinceridade, que é uma espécie de coerência, se é que alguém me entende.

Sei que o bem escrever é perfeitamente ensinável em muitos pontos. Mas escrever ultrapassando a técnica é questão de faro, de tino. Li uma vez que escreve bem quem pensa, logo, se você pensa, escreve. Existem brilhantes poetas que não sabem escrever, mas sabem ditar, ou seja, têm em mente versos encadeados sem precisar desenhá-los...

E a crônica de amor?


Fui pensando no destino deste rebento sem pai, que empacou qual uma mula, enquanto escrevia neste instante. Decidi por uma idéia inovadora, pelo menos no La vie en close. Sei que um blog encanta seus mentores pela possibilidade de interferências externas, que inauguram uma relação muito louca de cumplicidade e de troca imediata de idéias. Borges disse que um escritor só se livra de uma obra quando a publica. Publico e me livro, pois, de um texto interminado para que vocês me ajudem a contar como termina, já que essas duas personagens não quiseram me dizer mais nada. Se disserem algo a vocês, compartilhem, por gentileza.

Sem mais delongas:


Encontro casual



Alguns meses atrás ele havia aprontado poucas e boas e ela conhecera todas as dores do amor.
Naquela tarde ela o viu e deixou que a visse em belos meneios. Olharam-se em frente ao escritório dele, num dia de sol quente. Cumprimentaram-se com surpresa:

- Você por aqui! Quanto tempo...
- Verdade, quase um ano. Como está você?
- Eu estou melhor do que nunca.

Ele achou conveniente convidá-la para se sentar. A ocasião pedia, embora a atmosfera anunciasse uma conversa pouco fluida, como quando se tenta um diálogo com naturalidade com pessoas de que não se gosta ou de quem se tem algum receio. Estavam em um boteco charmoso, decorado com madeira, caseiro mas sofisticado, onde Jorge tomava um chope todos os dias antes de voltar para casa. Ele pediu dois naquele dia.
Ela estava diferente, mais elegante, cabelos cortados e soltos. Tinha um ar renovado. Engordara um pouco, talvez dois quilos ou três, parecia ainda mais graciosa. Na cara dele o indisfarçável cansaço dos que trabalham sentados e, ao se levantar, parecem sempre carregar o próprio corpo como um saco de areia. Estava pálido, havia engordado deselegantemente e uma careca precoce já se ensaiava no topo da cabeça.
Jorge era um rapaz esperto pego de surpresa. Até sentar-se, não pôde conter nenhum indício de que não estaria tão bem. Suava e não encontrava assuntos, enquanto ela sorria, melindrosa, dando demorados goles, se abanando e olhando ao redor. Ele a entendia e observava como pairava em tudo o que ela dizia o ar de quem, numa disputa, sabe que está ganhando.
Ela o fitava sem medo, mas um olhar diferente revelou o momento de deixar os assuntos cretinos de lado. Ela começou:

- Estás namorando?
- Sério, assim, ninguém. E você?
- Estou com o Roberto.

Por muito pouco ele não tossiu com o gole que atravessava a garganta. Perguntou se era... aquele Roberto, e era o próprio. O rasgo de um ciúme adormecido correu o seu peito e ele quase se destrambelhou nas aparências.

[...]

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Sobre João Hélio Fernandes

A Rainha é um filme estrelado tão bem por Helen Mirren que, em certos momentos, faz a gente pensar que ela é a própria Elizabeth. O tempo é um recorte do episódio da morte de Lady Di, em um acidente de automóvel, em 1997. Diana, como se sabe, era separada de Charles e não mais pertencia à família real. O filme apresenta, no interior da diplomacia dos poderes, vários pequenos conflitos diante dessa situação sem precedentes - uma "ex" princesa - expostos através do tórrido temperamento inglês, que não derrama uma lágrima e enxerga humor nas tragédias.


Ex princesa, mas que tinha o título conservado em menções no mundo inteiro. A rainha se via então em uma série de problemas, a exemplo de ter que decidir entre um velório com a pompa de uma morte real, contrariando um milênio de tradição, e o enterro em uma "vala comum", causando repercussões das mais diversas. Enquanto isso, cuidava de outra questão delicada: os dois órfãos que Diana deixara. Com efeito, deixou que a avó falasse antes e fez com que os jovens passassem pelo terror da maneira mais branda possível, longe da exposição e de aborrecimentos.

Viaja com os netos sem dar maiores explicações e enfurece o povo inglês, que interpreta como descaso o que ela, numa boa intenção, pensou estar agindo da melhor maneira. A maneira como achava que uma rainha devia se portar, vestindo o luto silencioso e cumprindo o seu papel antes. Antes o dever, sobretudo para ela, que tinha a vida inteira prometida a ele.


///




Não vou me alongar na descrição do caso por dois motivos. Um deles é que seria redundante, dada a imensa exposição e o conhecimento absoluto sobre o caso. O outro é que tratar disso se tornou uma tarefa insuportável para mim, por outros dois motivos (vão me perdoando pelas ramificações): um, porque sempre me sinto muito mal. O caso é de dar vertigem, de embrulhar o estômago de um bárbaro. O exercício da alteridade, aquele que diz da capacidade de se colocar no lugar do outro, para este caso, eu não recomendo muita intensidade. Não para o menino, não para o lugar da mãe do menino. Não para quem viu nem para ninguém.

O segundo motivo é simples e franco: não suporto meus próprios pensamentos. Sinto vergonha ao me ver ávida por notícias terríveis, percorrendo os informes do horror, querendo, de certa maneira, fazer drama, "novelizar" uma coisa real e tão grotesca. Mas acontece. Quando vejo, lá estou eu à procura de mais sangue, atrás de um novo aperto no peito, de sentir os olhos marejarem sabe lá para que fim, para me provar que coisa.

Serei eu um monstro? Serei eu a única?

Surgem aos borbotões novos lances no Google e novas comunidades no orkut relacionadas à tragédia do menino. Em menos de uma semana, treze mil membros de uma comunidade virtual inteiram um fórum ativíssimo de discussões. Muitas demonstrações de solidariedade e toda a natureza de comentários - a maioria eram pessoas se articulando para efetivar sua revolta. Entre eles o seguinte tópico, a esta altura excluído: "Virou carne moída!", em que o autor anônimo declarava em caixa alta a vontade de ver a "imunda prole da classe média" sofrendo o mesmo fim. Em outro, um apelo desesperado pelas fotos do garoto esfacelado (esse mostrava a identidade).

Gosto de observar como se formam as inflexões do sentimento coletivo. Para um formato de povo, um formato de notícia: difícil decidir quem ditou primeiro. Fátima, a brilhante, é designada a cumprir os papéis de peão entrevistador nas horas em que o bicho pega, quando não pode haver falha alguma. Delicado, veja, ela é mãe também, sabe o que está fazendo. É tão brilhante que carrega uma aura imponente mesmo de cara pros pais órfãos do menino, que entrevistou para o Fantástico neste último domingo. Não é estranho?

Detesto as conclusões rasteiras que demonizam a rede Globo, atribuindo a ela a culpa das deficiências de opinião do povo. Mas a TV no Brasil representa um caso muito especial. Ela é a única verdade e a única conexão com o mundo pra milhões de pessoas. Além de tudo, é linda, emblemática, misteriosa. Um tubo louco de imagens perfeitas onde as pessoas e suas falas são belas. Então o indivíduo, o analfabeto de Brecht, tenta aproveitar, tenta viver desse jeito tão bonito. Transforma-se, vendo as novelas que dizem imitar o seu cotidiano. A televisão adestra, ele dança, copia, se balança com a maré que brinca com os seus sentimentos: "Carro pega fogo com pessoas no porta-malas..." e em seguida: "Esporte! O Corinthians enfrenta o São Paulo...". E dá-lhe bailado, dá-lhe teatralismo. Uma alfinetada nessa pobre alma pra ver se a acorda, por gentileza, para ver se existe vida antes da morte! É assim.

Generalizações são burras, mas eu luto pra não condenar a passionalidade dos trópicos quando lembro o que ocorreu em Madri, há alguns anos, em épocas de atentado terrorista. Dias depois do desastre, estava articulado um movimento nacional em protesto pelo acontecido. Gigantescas passeatas em marcha silenciosa, em luto profundo. Uma conhecida relatou a mim a vontade que teve de fotografar. Mas lá estava ela, com a câmera em riste, qual um fuzil apontado pra cabeça de quem não teme perder a vida. Pareceu estúpida demais e não teve coragem de registrar.


quarta-feira, fevereiro 07, 2007


Aracaju, bon voyage

Viagens de última hora têm tudo pra dar certo porque não deixam tempo pra se imaginar muita coisa. Tudo o que vier é lucro, e ainda na pior das hipóteses, uma viagem sem gracejos vira pauta pra uma conversa distraída ou assunto pra um desses blogs perdidos na vida. "A expectativa estraga os filmes", penso eu, todos os dias, “assim como quase estragou meu venerado Pulp Fiction”. Resgatei-o, anos mais tarde, pensando retificar a estréia falida e me surpreendi: com a vista serena, percebi sem exageros como é deliciosa a trama. E foi assim em Aracaju, cidade que sempre imaginei insossa, mas de onde voltei saudosa neste último domingo.

Na quarta-feira cinza, mezzo tediosa, mezzo calabresa, meu amigo que edita filmes me assalta com uma proposta imperiosa:

- Vou pra Aracaju com meu primo neste fim de semana, quer vir?
- ...
- Festival de graça com Titãs, Vanessa da Matta, Pato Fu e Lenine.
- Hum, que massa! Mas como vamos?
- Ah, aventura, Jojo!
(Palavra perigosa. Acho que ele está me desafiando.)
- Vamos, claro!

A viagem seria na sexta. Adiei, não propositalmente, minha resposta pro último minuto, deixando suspensa no ar uma pequena tensão – o tempero. Partimos pra Aracaju, desviando do caminho pra agregar um quarto elemento e seguimos, todos à bordo do revolucionário Pancho Villa, cabra experiente, conhecedor de causa e das regras herméticas, milhares de quilômetros rodados.
Lá chegando, fomos acolhidos por uma boa alma. O festival, na orla de Atalaia, foi primoroso. O show de Lenine teve até (d)efeitos sonoros: de repente, um apagão sinistro de som e luz que só voltou 15 minutos depois, enquanto ele tentava entreter o público já disperso apontando, doido que só, pro céu de lua cheia.

No fim do show, todos de bundinha na areia filosofando bonito sobre as teorias do amor, quando acontece essa maravilha:
- Ah, ah, ah, ah, ah.
- ???
- É niuma, é niuma. É niuma véi! – disse ele, que brotou do nada ao meu lado, falando através do último dente, enquanto pedia minha mão. Hesitei um segundo, dei a mão e entramos todos no clima:

- É niumaaa!!! É niumaaa! Ô véi é niuma!!!
- Ah, ah, ah, ah. Ainda tem show lá???
- Vá, véi, tem, véi! Mas é niuma!!!
- Ah, ah, ah, ah, é niuma, é niuma! É niuma!

O resto fluiu na maciota. Cervejinha, sol brando, praia e água de coco, embora eu só tenha entrado no mar sergipano cor de barro mesmo pra pular as sete ondinhas, e ainda por pouco tempo, nos últimos minutos do dia de Iemanjá - creio eu que tenha dado tempo. Entre "joanices" (não conhece? É um neologismo que classifica atitudes de, digamos, fácil compreensão) e muita risada, voltamos pra casa, acho que todos bem felizes.